Postado em 02/01/2017
Boi Neon (Divulgação)
Gabriel Mascaro não vem de uma família de tradição artística. Sua mãe é professora de escola pública e seu pai trabalha na área administrativa de um banco. Aos 13 anos, foi levado por um tio a um show de uma banda pernambucana desconhecida, num festival de música, em Recife. O evento atrasou 5 horas para começar por causa da chuva. Gabriel tremia de frio, com as canelas finas e o tênis molhado, até que às 4h40 da manhã, nos primeiros raios de sol, subiu ao palco do Abril Pro Rock 96 um tal de Chico Science ao lado de Gilberto Gil. Aquele momento ficou marcado em sua memória. Depois desse dia, seus pais se esforçaram para inscrevê-lo em um conservatório: queria ser músico. Levou os estudos de música tão a sério que não deu certo. Precisava do acaso, do imprevisível. Foi estudar Comunicação, arranjou um estágio na produção do filme Cinema, Aspirinas e Urubus, dirigido por Marcelo Gomes, e despertou sua vocação para as artes visuais e para o cinema. Em pouco tempo e muito trabalho, construiu um currículo caprichado com instalações artísticas e produções, entre longas e curtas-metragens, ficcionais e documentais, premiadas no Brasil e no exterior, como seu último trabalho, Boi Neon, que figura na lista dos Melhores Filmes de 2016, do jornal norte-americano The New York Times.
Quando descobriu que queria trabalhar com artes visuais, sobretudo com cinema?
O cinema é na verdade um bom acidente na minha vida porque me pegou desprevenido. Minha chegada nele é inusitada. Não tive formação cinéfila na juventude, tampouco em quadrinhos ou games. Eu trabalhava no Movimento Popular de Comunicação com rádios comunitárias no Alto José do Pinho, bairro de Recife, quando consegui uma vaga de estagiário de direção no filme Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. Voltei das filmagens muito conectado com o desejo de estudar e pesquisar no campo do cinema. Mais à frente, em 2004, na minha primeira ida a São Paulo, acidentalmente visitei o Sesc Pompéia e lá estava acontecendo um festival diferente, o Videobrasil. Conhecer esse festival naquele momento foi muito especial, pois minha pesquisa em cinema e artes visuais se tornou híbrida e expandida, a partir deste contato.
Como foi sua formação e como começou a produzir?
Minha formação em cinema é autodidata e é fruto de pequenos grupos de pesquisa não formais nos quais me envolvi. Não havia curso nem de Cinema nem de Artes em Recife na minha época. Na faculdade de Comunicação, me juntei com outro realizador pernambucano, o Marcelo Pedroso, e juntos a gente lia muito sobre documentário. Foi meu grande parceiro de início. Plantamos muita coisa de nossas pesquisas juntos. Além dele, Marcelo Gomes, que me deu a primeira oportunidade para estagiar em seu filme, é hoje um colaborador querido e um amigo que, inclusive, me ajudou no roteiro do meu último filme.
O que o cinema representa para você?
Cinema é uma forma de linguagem muito instigante que me mobiliza e que me permite me conectar com o mundo a partir da partilha do sensível. Me interessa ler e escrever a partir de um suporte que atenta para o não dito, que revela a ambiguidade e que escapa da cognição, que sugere o dissenso. Num mundo tão confuso de signos que caminham para uma binarização das ideias, é preciso tumultuar ainda mais os significados.
Do documentário à ficção, como se deu a transição entre os gêneros em seus trabalhos?
Foi muito natural perceber estas fronteiras se diluindo. Em Doméstica, um filme que sequer filmei, já que dei uma câmera para que os jovens filmassem suas respectivas empregadas domésticas por uma semana e me entregassem o material bruto para eu fazer um documentário, termino por me deparar com um potente ensaio sobre a negociação política da imagem e a performance inventiva da representação. Então foi muito natural fazer a convergência destes campos, ficção e documentário, que parecem ser opostos, mas não são.
Como escolhe os temas de seus trabalhos?
Difícil racionalizar sobre o processo de escolha dos temas, uma vez que carrego eles comigo no inconsciente. Mas arriscaria dizer que o exercício de observação e deslocamento desta observação aparente me interessa como processo, como jogo.
Artistas pernambucanos sempre se destacaram no cenário nacional e há quem defenda a existência de um “cinema pernambucano”, você concorda com essa categorização?
Acho que vivemos um momento muito especial no Brasil onde as gerações produtivas estão a coexistir, fazendo trabalhos desafiadores e que não se encaixam nessa “gaveta” geracional. E mais, outras regiões do Brasil puderam se expressar a partir de uma política cultural de descentralização. Talvez este rótulo de um suposto “cinema pernambucano” que foi criado tenha um estatuto de política afirmativa, e por isso é legítimo, mas não me sinto confortável com qualquer rotulação de uma experiência que é inclassificável, orgânica, viva e mutante. Mas no inconsciente não vou negar que dá uma alegria danada ver uma energia pulsante saindo de um devido lugar e estar morando neste lugar.
Há algo em comum na cinematografia desses diretores que justifique esse pensamento de um cinema regionalista?
Eu consigo ver uma enorme generosidade entre os realizadores e artistas e reconhecer a força que uma política pública regional pode ter num Estado. Mas não consigo ver semelhança estética na produção regional recente. Quando penso em Pernambuco é mais pela quantidade de produções instigantes e pela afetividade que tenho pelos artistas e profissionais do que pela demarcação de um movimento estético. Não existe um marco conceitual que justifique um movimento regionalista. O que existe é simplesmente um país que conseguiu se aproximar da democratização da produção e da descentralização dos recursos. Ver outras regiões brasileiras produzindo não é um movimento estético, é simplesmente um direito histórico conquistado, e agora com este desmonte político, uma conquista talvez ameaçada.
Qual a importância da representação do cinema brasileiro no exterior?
É uma pergunta difícil e distante de mim. Quando crio não penso nessas coisas. A relevância de um trabalho no exterior é para além de mim. E não separo o Brasil do exterior.
Aos 33 anos, você recebeu prêmios importantes e seu último longa-metragem figura na lista dos melhores filmes de 2016. Imaginava tudo isso?
É com muito empenho e também muita sorte que os trabalhos conseguem se desdobrar e se conectar com as pessoas. Eu adoraria que todos os meus trabalhos fossem mais vistos. Mas não significa que eu precise simplificar uma pesquisa estética para tal feito. Pelo contrário, Boi Neon é um filme que foi amadurecido esteticamente há anos, e vem do acúmulo de outras experiências. Talvez seja meu filme mais radical. E quanto mais honesto mais isso transparece para o público. Eu não tenho como suprir esta expectativa do mercado nem dos críticos por um filme “no meio”, que vai reparar a esquizofrenia de ser de "arte" e de "público" ao mesmo tempo. Isso não se calcula. Isso não vai se resolver tão cedo, enquanto não democratizarmos os meios de comunicação no Brasil e garantir a visibilidade necessária que os filmes precisam para avisar ao público que eles existem. Só me resta ser honesto e sincero com o meu trabalho.
Como é seu processo de trabalho?
É a parte mais difícil de racionalizar. Mas diria que tenho um cotidiano regular de atividade, que se mistura com tentativas de escrita de projetos novos, finalizações de projetos em curso e zelo pelos projetos que já passaram.
Existe algum objetivo estético ou político na sua arte?
Não existe funcionalidade na arte em si. A funcionalidade é o que se faz a partir dela. Por exemplo, Boi Neon, para mim, trás a ambiguidade que permeia o sentido político do filme. Os corpos no filme são corpos biolíticos alegorizados entre a escritura do ordinário e o holofote do espetáculo da cultura de consumo. É um corpo estranho que resiste e que sonha. É também um corpo translúcido, que se despe e que às vezes até ilumina na ambiguidade do neon. Tento iluminar este tema de forma que o filme possa revelar novos contornos, novos relevos, novas erupções, mostrando tanto a violência quanto o prazer habitando no mesmo corpo.