Postado em 02/01/2017
Uma das questões mais inquietantes que envolve a cultura popular trata da forma como ela se insere na modernidade. Isso porque a expressão popular guardou, por mais de dois séculos, uma aura de purismo por conta de certo paternalismo daqueles que nela viam a herança de um tempo de “inocência” cultural. Certamente essa aura não se sustentou diante da emergência da cultura de massa (ou hegemônica, uma vez que é a grande referência de identidade cultural da grande massa urbana), que a usa desde sempre como matéria-prima para produzir produtos para gostos os mais amplos. Por outro lado, a cultura popular sempre teve em seu encalço guardiões ou zeladores que a impediram de se inserir no que é chamado há século e meio de modernidade.
O antropólogo argentino Nestor García Canclini afirma que se o popular se moderniza, certos grupos vão apontar que a tradição não leva a nada. Já seus guardiões vão dizer que ele perde genuinidade sob o domínio da cultura de massa. Canclini vai mais fundo na questão ao contradizer ambos os grupos. Ele garante que o popular não é monopólio dos setores populares. Isso porque o popular não se concentra nos objetos, mas no comportamento social e, especialmente, nos processos comunicacionais. Para entender essa “subversão” dos conceitos tradicionais de cultura popular e de cultura de massa, vamos a um exemplo.
A cantora pernambucana Karina Buhr começou sua carreira atuando nos anos 1990 como percussionista de grupos de maracatu do Recife, entre eles o Piaba de Ouro, de Mestre Salustiano. Ou seja, um grupo de tradição musical popular, urbano, embora de origem rural, pois seu estilo é o de baque solto. Depois disso, sua percussão a levou à banda de rock Eddie, de Olinda, e depois a participar da criação do grupo musical feminino Comadre Fulozinha, no Recife. O grupo desenvolveu repertório baseado na cultura popular, de onde tirou também o seu nome, que se refere a personagem mitológico da Zona de Mata de Pernambuco. A banda gravou três discos entre 1999 e 2009.
Quando o grupo se apresentava em Recife foi visto pelo diretor teatral José Celso Martinez Correia, que se encantou com as vocalistas. “Ele falou que nós éramos as pastoras que tinham comido o véio do Pastoril”, afirmou Karina em entrevista. A referência ao folguedo popular é espirituosa por inverter os papéis. Nele, geralmente a figura do Velho comanda a disputa entre as pastoras, sempre dançarinas sensuais, com este fazendo piadas e gracejos maliciosos. Convidada a participar da peça As Bacantes, de Eurípedes, encenada pelo Teatro Oficina, em São Paulo, Karina seguiu primeiro em temporada junto ao cantor, dançarino e pesquisador de cultura popular Antonio Nóbrega pelo interior do Nordeste. Em 2000, a Comadre Fulozinha emendou uma tournée mundial, e Karina só aceitou a proposta de Zé Celso em 2001, iniciando convivência de oito anos com o Teatro Oficina, atuando n’As Bacantes e no ciclo de cinco peças de Os Sertões, baseado na obra de Euclides da Cunha.
O nome de Karina Buhr apareceu sozinho pela primeira vez num CD em 2010, Eu menti pra você, com 13 composições próprias, escolhido o terceiro melhor do ano pela revista Rolling Stone Brasil. As referências da cultura popular foram substituídas pelas do rock e do pop internacional. Um ano após o primeiro disco, a cantora lança Longe de onde, álbum que radicaliza ainda mais a sonoridade pesada de guitarra, baixo e bateria.
Em entrevista ao programa Provocações, de Antônio Abujamra, veiculado pela TV Cultura em 4 de junho de 2013, o entrevistador perguntou o porquê da virada na carreira da cantora, do universo popular para o pop/rock. Ao que ela respondeu: “Não é uma virada, na verdade. É tudo junto”.
Canclini, ao defender que o popular não é monopólio dos setores populares acrescenta: trata-se de uma construção híbrida. Por isso é tudo junto. Karina elaborou uma barulheira sonora que se aproxima do rock, ou do punk, como na faixa título do álbum Selvática (2015), dedicada às guerreiras do Daomé (África), porque o maracatu já era barulhento. “O baque solto é mais rápido, mais punk”, afirma Karina. Sem deixar o popular virar produto, a cantora elabora um trabalho autoral com propriedade (e não apropriação) do popular. Assim como vários artistas de sua geração, Karina não se apega ao popular como forma de reafirmação de uma certa “brasilidade”, ela simplesmente incorpora sem intenção, o que é algo também característico da cultura popular. Isso certamente subverte o processo da cultura de massa, que é o de apropriar e homogeneizar ao gosto médio, como tem sido feito com o funk carioca, antes expressão à margem da cultura.
Canclini, ao afirmar que a cultura popular é o produto de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais, atribui a artistas como Karina Buhr, Chico Science, Nação Zumbi, Mundo Livre, Otto, Lenine, entre outros, somente para ficar no campo da música, o papel de encontrar lugar na modernidade e na cultura hegemônica para aquilo que antes era só referencial. Ou seja, para articular a cultura popular como elemento de híbridização.
Walter de Sousa Junior é Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e graduado em Comunicação Social pela Universidade Braz Cubas. Tem experiência em temas sobre gestão da comunicação, educomunicação, hibridismo cultural, cultura popular, cultura de massa, circularidade cultural e música caipira.