Postado em 01/09/2001
Gilberto Dupas
Era uma viagem atípica. Ele havia embarcado às pressas, justo na semana da entrega do imposto de renda. E com vinte minutos para arrumar as malas. Toda essa afobação lhe angustiara particularmente, porque envolvia dois dos raros assuntos que ele gostava de fazer com muita calma: preparar a bagagem e acertar com o leão. Nessas duas áreas, odiava confusão e improvisações.
Como sempre, o ritual anual da declaração de imposto havia sido preparado com muito cuidado. Era matéria em que não permitia delegações. Ele e a fera frente a frente. Olho no olho. Os documentos já estavam todos separados e os formulários rascunhados. Justo quando iria arrematar as decisões delicadas e fazer a revisão final, estourou a viagem inadiável para Londres. O preenchimento às carreiras do formulário final provocou nele aquela péssima sensação de trabalho malfeito e imprudência. Ele não gostava nada desse tipo de risco. Que fazer? Assinou a declaração e pediu à secretária que a entregasse no dia seguinte.
Com as malas, então, outra confusão. Estaria frio ou calor? Levaria a capa de chuva? Por absoluta falta de tempo, parou as perguntas por aí. Acabou catando meia dúzia de camisas, outra de cuecas e meias, apanhou quatro gravatas fáceis de combinar, improvisou uma ou outra peça avulsa e jogou tudo na maleta média junto com uma malha de lã e um tênis velho. Na pasta de mão, além de documentos e papéis de trabalho, dois livros que pegou na estante do corredor após trinta segundos de hesitação. De qualquer forma, sempre poderia comprar outros lá.
Logo nos primeiros minutos de táxi, quando ainda daria tempo para voltar, o cérebro estressado disparou as dúvidas urgentes: passaporte, cartões de crédito e passagem. Apalpou os bolsos, sentiu os contornos e acalmou-se. Meia hora depois, quando retornar já seria impossível, começaram a borbulhar as mil questões inúteis do tipo "será que peguei meia branca para os tênis?" ou "estou com um terno só; e se derrubar café-com-leite na calça?". Mas elas não o perturbavam tanto. Ele sabia que eram apenas pequenas vinganças de sua mente obsessiva para castigá-lo por causa da pressa, como aqueles caracteres estranhos na tela do computador causados por alguma sobrecarga no sistema.
Seus velhos esquemas de proteção logo mais dariam conta do resto da crise. Ele tinha se habituado a fazer das viagens longas um casulo muito comprido e seguro cujo buraco de entrada era o momento da entrega do passaporte ao sujeito da Polícia Federal. O olhar severo e frio conferindo a fotografia e o exame atento da listagem do computador tinham a solenidade de um rito de passagem.
Quando mergulhava na solidão do longo corredor rumo ao portão de embarque, ele já se sentia bem protegido e, principalmente, inalcançável. Justamente em nome dessa paz precária ele vinha resistindo com firmeza à mania do telefone celular. A partir daquele momento, ele não se sentia mais particularmente responsável por aquele monte de problemas que ficara para trás. A não ser em caso extremamente grave, ninguém forçaria contato através da armadura do casulo, até que ele chegasse na outra ponta. Tinha umas deliciosas quatorze horas de trégua, só para si. Também não adiantava inventar preocupações. Naquele longo túnel, que terminaria em Heathrow, sua onipotência era de pouca utilidade. Ele estaria confortavelmente isolado do mundo. E com a maravilhosa sensação de ser pego no colo, embalado e entregue ao seu destino.
Apenas dois riscos graves: os imprevistos de viagem e os chatos. Quanto a problemas técnicos e meteorológicos, só dava para cruzar os dedos e torcer. Para o caso de indivíduos inoportunos, ele tinha aprimorado eficazes estratégias de defesa. A bendita destinação prévia dos assentos já era um grande quebra-galho. Vinha de graça com a passagem. O sujeito do "que coincidência, você por aqui?" iria com ele no máximo até o corredor do avião. Mais que suportável.
Quanto ao vizinho de poltrona, risco gravíssimo, as táticas eram mais sofisticadas. O cumprimento muito formal, o olhar vazio e o fone de ouvido normalmente bastavam. Se fosse absolutamente necessário, e só nesse caso, o extremado "desculpe-me, mas preciso terminar este livro". Um recurso complicado, pois, se utilizado logo no começo da viagem, o obrigaria a ficar com os olhos pregados no mesmo texto durante todo o tempo em que estivesse acordado. Para não ofender, era sempre bom aliviar o clima com uma palavra rápida durante a troca de pratos no jantar. Costumava ser a parte mais delicada. Era preciso muito cuidado na inflexão da voz e na amplitude do olhar. Qualquer exagero poderia estimular o invasor e exigir, em seguida, uma grosseria radical. Finalmente, era sempre útil uma despedida bem cordial no desembarque. Isso permitiria alguma retomada se, como já havia acontecido uma vez, descobrisse mais tarde que o suposto chato era uma figura interessante ou importante que ele teria gostado muito de conhecer.
Foi todo esse estoque de experiência que ele se preparou para colocar, receoso, no olhar que iria dirigir a seu futuro vizinho da longa travessia. Conferiu o número do assento. Não havia dúvida. Teria que enfrentar uma velha bruxa. Muito feia, toda em gritante seda estampada, verruga saltando da penugem esbranquiçada acima dos lábios lambuzados de vermelho-carmim e - sinal de grande perigo - olhos vivos lançando apelos de "aqui estou eu" em todas as direções. Tirou o paletó, fechou a cara e concentrou-se na operação desmonte-da-pasta-de-mão. Retirou a malha de lã, um dos livros, a lapiseira, os chinelos e o necessaire. Guardou dentro dela passaporte, travellers, carteira e passagem, travou-a e ajeitou tudo no porta-bagagem. Mirou a velha de soslaio. Seus olhinhos agitados imploravam por intimidades. Foi só sentar e ela atirou um "está indo pra onde?". Era dinamite pura. Nosso personagem balançou a cabeça dando a entender que não falava sua língua e, com o fone de ouvido já pendurado no pescoço, mergulhou a cabeça no livro. Mas uma velha como aquela não ia desistir assim. Em nova arremetida, ela tenta o inglês; ele faz cara de búlgaro. Chega o comissário perguntando se querem jornais e ele comete grave erro. Responde em português: "O Herald Tribune, por favor". A velha sente a pancada e faz um muxoxo, humilhada. Seu olhar agora é de desprezo e vingança.
Ele se arma com o fone de ouvido e assume que o mal está feito. Sentada na poltrona do corredor, a velha em desespero tenta o companheiro do outro lado, com certo sucesso. A distância entre os dois e o ruído dos motores, porém, dificulta. Ela desiste em poucos minutos e volta-se com nova estratégia para sua vítima original. Passa a olhar fixamente as notícias do jornal sobre os ombros dele, implorando comentários. Que não vêm. A bruxa bufa e resigna-se. É claro que, nessas circunstâncias, até a palavra rápida de gentileza na troca de pratos do jantar poderia ser fatal. Embora tivesse começado a achar graça em toda aquela história, ele manteve silêncio absoluto. Seu único gesto, provocador, foi na hora de dormir. Percebe a velha aflita, mergulhando inutilmente o dedo indicador na parafernália de botões, tentando apagar a luz. Quando desiste e procura chamar a aeromoça, ele, num gesto rápido e sutil, aperta o botão correto. Percebendo sua luz desaparecer, a velha tem um minuto de perplexidade. Depois, sem desfranzir a testa e virando muito pouco a cabeça, dispara um curto e duro "obrigado". Pareceu um tiro. Até o fim da viagem, foi tudo.
Os dias em Londres corriam lentamente. Os compromissos eram espaçados e o hotel ficava em frente ao Hyde Park. Ele não desgostava das longas caminhadas, livro embaixo do braço, observando os pequenos esquilos e aqueles ingleses branquelas expondo coxas e costas ao primeiro raio de sol de abril.
Vez por outra vinha a crise. "Eu aqui a milhares de quilômetros de casa, mero pontinho perdido na face do globo, fazendo cera para a próxima reunião, enquanto o meu bendito imposto de renda, preenchido porcamente, repousa nas mãos do fiscal sedento de sangue. Ele vai me pegar por bobagens, pecados que não cometi, e lá estarei eu a chafurdar no atoleiro da burocracia pública, tratado como suspeito, em longas filas e sem ar-condicionado. Merda de viagem!"
Nesses momentos, em meio à bruta depressão, sentia-se corpo sem pele. Profundamente exposto e ameaçado. Daria tudo para voltar ao grande casulo e sumir-se nele. "Vou me apresentar à Receita Federal e pedir para refazer as contas. Mas será que não é pior?", pensava. Acuado e escapista, ele fantasiava: "Se o avião cair, não será tão trágico assim". "Mas será que o pessoal do imposto é mais tolerante com viúvas?" E, retomando coragem e dignidade: "Não vou deixar essa fria pra minha mulher. Eu mesmo vou ter de resolver!".
Em meio às alucinações, a missão em Londres foi concluída. A presença dos fantasmas refreava seu prazer por voltar. Ele sabia, por experiência, que o casulo protetor só funcionava nas idas, nunca nas voltas. Tentava se consolar. Afinal, o que tinha feito de errado? Na verdade, não sabia. Só não conferiu a declaração. E, portanto, poderia haver erros. É o que bastava para alimentar sua agonia transatlântica.
Chega em casa saudoso, dolorido e assustado. Abraça forte demais mulher e filhos, entrega as lembrancinhas, toma um banho e parte para o escritório. Vai enfrentar seu destino.
Abre a porta, cumprimenta os primeiros que vê, entra em sua sala e chama a secretária para saber das pendências. Ela entra gentil, pergunta pela viagem e dá o primeiro recado: "Só para seu controle, adiaram a entrega do imposto de renda para o mês que vem. Veja só, toda aquela correria à toa. Deixei os formulários na gaveta de cima, caso o senhor queira fazer uma revisão. Seja bem-vindo".
Gilberto Dupas é autor do romance Retalhos de Jonas,
publicado em segunda edição pela editora Paz e Terra.