Postado em 23/12/2016
Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), André Singer possui graduação em Ciências Sociais e em Jornalismo na USP, onde também fez mestrado e doutorado. Foi secretário de Redação da Folha de S.Paulo entre 1987 e 1988, porta-voz da Presidência da República de 2003 a 2007 e secretário de Imprensa da Presidência da República de 2005 a 2007. A seguir, os melhores trechos do depoimento de Singer, no qual ele fala sobre comportamento eleitoral, democracia e análise de classe do Brasil.
André Singer esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 9 de novembro de 2016.
Conservadorismo popular
O assunto que dominou oito anos de estudos, no mestrado e no doutorado, foi a eleição de 1989, em que havia um candidato de esquerda, o ex-presidente Lula, e um candidato de direita, o ex-presidente Collor. Observando a relação entre voto e renda, o que fez o Collor virar a eleição foram os eleitores de renda mais baixa, o que era um paradoxo. Ao mesmo tempo, os mais pobres eram os mais favoráveis a que se utilizassem tropas para acabar com greves, por exemplo.
Eu construí, então, um raciocínio que é uma chave para entender o eleitorado brasileiro. Havia uma razão simples. Esses eleitores não possuem carteira assinada, então eles não podem fazer greve. Se existe uma greve de ônibus e um trabalhador de uma fábrica chega atrasado, ele tem a proteção de um sindicato para negociar aquela questão. Uma diarista que não consegue chegar a seu emprego não recebe dinheiro. Essa condição desse setor da sociedade brasileira é de muita vulnerabilidade e, em função dessa vulnerabilidade, esse setor é muito apegado à ordem, o que muitas vezes o coloca contra a esquerda, já que a esquerda é o que vem na contramão da ordem.
Isso leva a crer que existe no Brasil algo que poderíamos chamar de “conservadorismo popular”, e esse conservadorismo popular vai ser explicativo de um fenômeno que veio a ocorrer muito depois e que é a ideia do Lulismo, ou seja, a tentativa de fazer mudanças que beneficiam essa população sem ameaçar a ordem.
Mudança de perspectiva
Como jornalista, que entrevistava, participava de coletivas etc., eu não tinha a menor ideia de como se sentia uma pessoa que estivesse do outro lado, na comunicação do governo. Isso acabou sendo muito útil para o meu trabalho como cientista político, porque pelo convívio comecei a entender o cotidiano de quem tem que tomar as decisões e explicá-las.
Uma das coisas que percebi é que o ritmo da política não é o ritmo da notícia. Como jornalista, você quer uma notícia por dia ou por hora, mas as decisões importantes são maturadas por anos e não podem ser produzidas porque há uma demanda por notícia. Então, há um choque de tempos, ritmos, que são relativamente incompatíveis. Para quem está assessorando algum político, por mais que se ache que deveria ser diferente, é preciso correr com o ritmo real, e isso impõe muita dificuldade.
Direita e esquerda
Acho que o conceito de direita e esquerda tem bastante utilidade prática. O Norberto Bobbio diz que você pode conceituar direita e esquerda por duas vias: ou a via da igualdade ou a via da liberdade. Enquanto a esquerda seria mais favorável à igualdade, a direita seria menos favorável à igualdade e mais favorável à liberdade. Por essa via, entende-se muito do Brasil e da política brasileira.
É fácil identificar no cenário brasileiro quem são as forças mais e menos favoráveis à igualdade. Quem defende essa última posição dirá que o caminho que produz mais desigualdade produz mais riqueza e no final todo mundo ganha. Essa é a racionalidade da posição. Eu considero errado dizer que os conceitos de esquerda e direita estão ultrapassados, sobretudo em um país como o Brasil, e mesmo no mundo, em que a desigualdade está crescendo.
Crise de representação
Há uma crise de representação no mundo, mas não se inventou nada de diferente por enquanto. A democracia moderna é representativa, depende de partidos e mecanismos de representação. Isso não quer dizer que não estejamos tendo grandes problemas na representação, no Brasil e fora do Brasil, mas na minha opinião esses problemas só podem ser enfrentados por um aumento da participação direta. A única coisa que consigo enxergar para recuperar e superar a crise da democracia é a participação direta da sociedade.
É importante, porém, que a gente entenda que essa participação direta não pode substituir a representação. Na teoria democrática moderna, não há como manter a liberdade, os direitos, a separação dos poderes e tudo aquilo que caracteriza o processo democrático sem representação. Ao mesmo tempo, não vejo como recuperar a representação sem participação direta. Se a gente recusar tudo isso, a única saída que teremos é uma saída autoritária, e continuo apostando todas as minhas fichas na democracia. Com todos os problemas que ela tem, e são muitos, é o grande passo civilizatório que a humanidade deu no ponto político.
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