Postado em 01/09/2001
Animados e bons de papo
Boneco, briguela, mamulengo, títere, fantoche, bunraku, marionete, bonifrate. Muitos são os nomes e as técnicas do teatro de animação.O que todos têm em comum é o anseio de incluir a arte da manipulação na vanguarda teatral
Animar: 1. Dar alma ou vida a: "Narra a Bíblia que Deus, soprando o barro, animou
o homem".
João Minhoca era um sujeito popular no final do século 19. Negro abolicionista que, parodiando a política, caminhava pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil contestando o sistema escravista. Tornou-se um artista conhecido, apresentando-se até para o imperador d. Pedro II. Dentre todas as suas características, uma era, sem dúvida, a mais marcante: João Minhoca era um boneco. Isso mesmo, um boneco de fio, feito de madeira e pano, e manipulado por seu criador, o tipógrafo João Batista, aliás, também negro. O famoso boneco nasceu no momento em que as marionetes foram para as ruas e incorporaram costumes e trejeitos populares típicos da época. Porém os poucos registros sobre o desembarque desse tipo de teatro no Brasil nos levam à chegada dos portugueses, numa época em que o teatro de animação era uma febre na Europa. Muito tempo se passou, e apaixonados e profissionais da animação em todo o mundo foram pouco a pouco criando uma estrutura sólida e respeitável em torno do teatro com bonecos e marionetes.
Contadores de histórias
Muitos são os nomes e as técnicas de teatro de animação que chegaram ao Brasil, ou mesmo nasceram aqui. Mamulengo, em Pernambuco; joão-redondo, no Rio Grande do Norte; babau, na Paraíba; joão-minhoca, na Bahia, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro; casimiro-coco, no Piauí; briguela, em São Paulo.
São inúmeras as denominações dos bonecos populares no Brasil, e Susanita Freire é antes de tudo uma apaixonada por todos eles e por sua história. Uruguaia de Montevidéu, Susanita chegou ao Brasil em 1972 e, em 1984, fundou, com outros artistas, a Associação Rio de Teatro de Bonecos. "Sempre com sentimento comunitário", diz a atriz, arte-educadora e titeriteira - como ela própria costuma se denominar - que se engajou em associações, companhias, pesquisas e até num jornal de notícias, a Folha do Bonequeiro, com divulgação nacional. "Pela sua origem, o teatro de animação teve primeiro um caráter religioso, só depois se tornou popular", explica. "Hoje, existem textos específicos para crianças, jovens e adultos. Mas, por mais que toque neste ou naquele tema, é sempre lúdico, pois mexe com o interior daquele que assiste ao espetáculo." Atualmente, a arte-educadora trabalha também pela integração do teatro de animação na América Latina como secretária da Comissão para a América Latina da Unima (Unión Internacional de la Marioneta), órgão mundial formado em 1929, em Praga, República Tcheca. Uma tarefa que visa, antes de tudo, separar o joio do trigo dentro do enorme balaio de manifestações dessa arte. "Não me agrada de modo algum quando a coisa é malfeita, como se vê, às vezes, em festas de aniversário e na televisão. Ali, são apenas bonecos sacolejando, sem nenhuma preocupação." Álvaro Apocalypse, fundador da companhia mineira Giramundo, que também abriga em seu repertório espetáculos adultos, cita o mesmo problema quando o teatro de animação é levado à televisão: "É possível manter no ar um programa infantil com bonecos, mas acho difícil fazer qualquer coisa neste sentido para adultos. O que é mais comum de se ver são bonecões representando políticos, que promovem discussões, mas, até aí, não passam de atores fantasiados."
Teatrão ou teatrinho
"Nosso teatro de bonecos pode ter cenário, figurino, iluminação. Ou não. Pode ter técnicos e direção. Ou não. Como o teatro de atores. Ao contrário do teatro de atores, porém, pode não ter atores. E, ao contrário do teatro de bonecos, pode não ter bonecos. Ou não." Assim se define o grupo Sobrevento, criado há catorze anos no Rio de Janeiro e que tem em seu repertório até uma montagem do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Luiz André Cherubini, um dos fundadores do grupo, acredita que, antes de ser de boneco, animação é teatro. Ele ressalta que cada vez mais os grupos estão inseridos em espetáculos de teatro e ganhando, inclusive, prêmios por cenografia, figurino e até direção. Porém, Luiz analisa que, para uma consolidação definitiva do teatro de animação dentro das artes cênicas, há muito que esperar dos próprios bonequeiros. "Aqueles que têm com os bonecos uma relação fetichista, como se fossem objetos sagrados, correm o risco de transformá-los em santinhos de prateleira. O boneco é um objeto de jogo, que só vive na representação." Luiz André conta que há dez anos, no Brasil algumas pessoas ainda pensavam em "teatrinho de bonequinhos". "Quando fazíamos uma apresentação, tínhamos que dizer ao público que se tratava de um espetáculo de bonecos, mas que não era o que eles estavam pensando, brinca Luiz André. Assim como muitos outros artistas, ele acredita que ainda existe muito preconceito quando se fala em teatro de animação. Álvaro acredita que essa imagem infantil que o teatro de bonecos adquiriu está ligada ao fato de que os bonecos foram - e ainda o são - amplamente utilizados com funções pedagógicas em escolas e instituições de ensino. Mas ressalta: "Em sua origem, o teatro de bonecos tinha um cunho religioso, e, até o século passado, as montagens eram dirigidas aos adultos." Mas, para a alegria dos artistas e surpresa dos leigos, existe um meio pelo qual se pode mudar essa mentalidade. Além da organização em torno de associações, os titereiros contam com festivais em todo o mundo como espaço de divulgação. "Eles têm contribuído muito para o crescimento dessa arte. Funcionam como espaço de intercâmbio de informações e como escola, já que reúnem oficinas e espetáculos de diversos países", explica Marina Gil, coordenadora do Festival de Teatro de Bonecos de Canela (RS), que completou, neste ano, sua décima terceira edição. Uma prova de que os festivais servem também para difundir a multifacetada arte da animação é que, por exemplo, no Festival de Canela, a comédia não é o gênero mais procurado. "Pelo contrário", ressalta Marina. "Os espetáculos adultos têm tido cada vez mais procura. Há uma grande preocupação dos grupos em fazer produções para adultos."
Mesmo assim, ainda há trabalho pela frente. Beto Andreta, da companhia paulistana Pia Fraus, acredita que ainda falta ousadia por parte dos artistas e dos curadores dos festivais para tocar em temas polêmicos. A Pia Fraus é classificada às vezes como teatro estético, já que busca a fusão entre atores, bonecos, dança e artes plásticas, algumas vezes lançando mãos de textos de dramaturgos como Nelson Rodrigues e García Lorca. Tudo isso para levar a arte dos bonecos a um lugar onde Andreta afirma que o teatro de bonecos tinha tudo para estar: a vanguarda teatral. "Houve um grande boom do teatro de bonecos no Brasil nos anos 80, quando nasceram as companhias mais expressivas, existentes até hoje. Mas, a partir daí, parece que a linguagem ficou estacionada, e não se fez mais nada no sentido de mudar aquela imagem preponderante de um teatro de bonecos meio infantilóide." Luiz André completa: "Às vezes, o artista quer ser virtuoso para se aproximar mais da platéia. Mas o boneco pode ser delicado e pode ser rude. Ser bonito e grotesco. Ele tem que andar por tudo isso para não dizer uma coisa só. O boneco é pop e erudito."
Clássico ou surreal Mostra no Sesc Pompéia traz titereiros do mundo todo "Magrittinho, o 'homem sem cabeça', é um personagem surpreendente, que se apresenta em qualquer lugar ou momento; ele não tem cabeça, mas, assim mesmo, deixa as pessoas pensando", diz a arte-educadora e titeriteira Susanita Freire . O projeto Família Magrittinho é desenvolvido a partir de uma pesquisa realizada nos quadros de René Magritte e seus colegas surrealistas. Criado por Susanita, com figurinos de Coca Serpa, Magrittinho foi uma das atrações da Mostra Internacional de Teatro de Bonecos, realizada no fim de agosto no Sesc Pompéia. Companhias da Argentina, Bélgica, Chile, Espanha, França, Holanda, Itália, Portugal e República Theca transformaram, de 28 de agosto a 2 de setembro, os espaços da unidade num palco colorido e cheio de animação. No fim das contas, ficou difícil distinguir os atores dos bonecos. A magia exercida pelas marionetes emprestaram à unidade um ambiente feérico, mesclando uma certa bruma medieval com aspectos de uma modernidade surreal, representada pela personificação quase esotérica dos bonecos: uma alegoria da própria vida, muitas vezes conduzida ao sabor das mãos alheias. |