Postado em 29/11/2016
por Martinho da Vila
A professora Natalina, diretora de uma creche de crianças carentes, dizia a todos que Papai Noel não existe e que a canção “Como é que Papai Noel / Não se esquece de ninguém / Seja rico ou seja pobre / O velhinho sempre vem” não é verdadeira, porque ela, na infância muito pobre, viveu na roça, nunca recebeu a visita do velhinho e jamais ganhou um presente.
A graça de Natalina, na verdade, é Natália, nome que ela não gosta porque remete à talha onde era decantada a água de moringa de barro que bebia na infância e na adolescência. Não tinha boas lembranças do seu torrão natal, uma cidadezinha do interior, sem luz nem água encanada.
Um amigo dela, advogado, o Dr. Manoel, que os íntimos chamam de Noel, num dia 25 de dezembro, conforme o combinado, fantasiou-se de vermelho, colocou barba, bigode, peruca e foi entregar os presentinhos simples que a professora comprou com suas economias, mas ela antes frisou:
— Meus queridinhos! Papai Noel não existe. É apenas um homem alegre que gosta de crianças e veio aqui para divertir vocês.
Ele não gostou do que ela disse, mas não discordou. Com voz rouca, falou:
— A professora tem razão. Crianças não devem ser enganadas. É tudo brincadeira e eu me divirto também. Hô! Hô hô hô!
A meninada sorriu feliz.
Num outro dia, em conversa particular, ele perguntou sobre a família da amiga.
— Eu sou filha de mãe solteira. Gostaria de conhecer meu pai, mas nem minha mãe sabe quem ele é.
— Como?
— Mamãe, jovem, teve um caso com um tal Nelinho, rapaz que foi passear na roça. Viveram uma aventura, se seduziram. Ele foi-se embora e ela ficou muito triste.
— Nunca mais se viram?
— Jamais. E minha mãe não sabia nada dele, nem mesmo o nome completo. Nelinho certamente é um apelido. Meses depois, descobriu que estava grávida. Meu avô ficou muito chateado, culpou a vovó pelo acontecido, quis castigar a filha, minha vó a defendeu, eles brigaram e se separaram. Vovô, envergonhado, sumiu. Minha avó adoeceu e morreu pouco depois. Tudo por culpa minha.
— Não se culpe, é o destino. Cada um tem o seu.
— O meu consolo é que a mamãe também diz isso. Me criou sozinha e nunca reclamou, mas a minha infância foi sem presente de Natal. Papai Noel não aparece por lá.
— A sua história é triste, mas você é uma vitoriosa. Conseguiu sair da roça e é uma professora, agora dirigente… como conseguiu?
— Ah! É uma longa história. Um dia lhe conto.
— E sua mãe?
— Continua em… um cafundó. Tento trazê-la, mas ela não quer. Prefere ficar lá, com os parentes.
— Estive naquele lugarejo uma vez, faz muitos anos. Tenho vontade de voltar. Está muito mudado?
— Que nada. Praticamente igual. Com certeza você gostará de rever. Vai. E se quiser conhecer minha mãe é fácil. Ela tem o mesmo nome meu. Basta perguntar a alguém, no interior todos se conhecem. Aproveita e dá notícias minhas. Diga que agora sou diretora da escolinha. Ela vai ficar contente.
Manoel foi, encontrou Natália mãe. Quando os olhares se cruzaram, ambos sentiram um tremor sem saber o porquê, mas se contiveram. Conversa vai conversa vem, chegaram à conclusão de que tiveram um colóquio no passado:
— Poxa! Você foi embora sem se despedir e nunca mais voltou.
— É… mas nunca lhe esqueci. Lhe tenho como uma boa lembrança. Mais de vinte anos se passaram e você continua linda.
— Que gentil! Obrigada! Você também está muito bonito. Um pouco mais gordo, ou melhor, forte e charmoso.
Novamente se envolveram. Se apaixonaram.
Manoel voltou lá outras vezes sem falar a Natalina. Só a procurou no Dia de Natal. Vestido de Papai Noel, chegou na creche com um enorme saco cheio de brinquedos. Distribuiu.
A professora brincou, sorrindo:
— E eu continuo sem presente. Papai Noel não existe, mesmo.
— Nunca mais diga isso, minha filha. Eu sou Noel, o Nelinho. O seu Papai Noel. Ainda lhe darei muitos mimos, e vou casar com a sua mãe.
Martinho da Vila é cantor, compositor e autor de livros como Ópera Negra (Global, 2001), Os Lusófonos (Ciência Moderna, 2006), Barras, Vilas e Amores (Sesi-SP, 2015).
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