Postado em 29/11/2016
A artista e educadora Edith Derdyk não se prende a um só campo de atuação. De trabalhos gráficos como capas de livros e discos à autoria de livros infantis até chegar às obras teóricas sobre desenho, sua “matriz biológica” tem a diversidade como ponto de partida.
Em sua trajetória, Edith também estudou em instituições estrangeiras (Vermont Studio Center, nos Estados Unidos, em 1993, e The Rockefeller Foundation, Itália, 1999) e participou de exposições coletivas e individuais desde 1981 no Brasil e no exterior. Sua produção inclui trabalhos que fazem parte de coleções públicas da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Fundação Padre Anchieta, Museu de Arte Moderna, Instituto Itaú Cultural (todos em São Paulo), Museu de Arte de Brasília e prefeitura de Nuremberg (Alemanha), entre outras instituições culturais. Neste depoimento, Edith conta detalhes de sua nova produção, que trabalha a ressignificação da caminhada como ato poético.
O desenho faz parte de minha matriz biológica. Na trajetória de meus estudos e pesquisas sobre desenho, bem como de minha atuação como educadora, escrevi dois livros na década de 1980, Formas de Pensar o Desenho e O Desenho da Figura Humana, lançando-me como escritora, ou, melhor, como uma artista que entende o livro como outra possibilidade de espaço poético, ingressando também na produção de livros de artista.
A escrita tem sua origem no desenho e essas conexões atávicas que fazem parte da natureza da imagem e da palavra viraram afluentes naturais e necessários que compõem o núcleo poético por onde todo o meu percurso artístico gira – a linha! Escrever e desenhar são atividades que se aproximam muito, por vocações similares em alguns aspectos, tal como se fossem caminhadas em suas extensões no tempo e no espaço – a linha é um elemento que transita e se desloca, seja no campo do papel seja no espaço.
Vêm daí as instalações site-specifics que tenho realizado desde 1997, com linhas estendidas, cujo ato construtivo é exatamente um corpo que se desloca no espaço de lá pra cá, num constante ir e vir, como se o corpo fosse a ponta do lápis ou como se neste ir e vir estivesse contida a memória do ato de folhear as páginas de um livro. As instalações resultam em tramas construídas e suspensas no espaço, um desenho no tridimensional, texturas ativando o espaço físico cumprindo sua virtude têxtil no plano bidimensional ou tridimensional: a linha escreve e desenha, concomitantemente. Assim, o espaço entre a natureza da palavra e a natureza da imagem vira o grande lugar onde habito.
O que me interessa, sobretudo, é esse trânsito entre a natureza da palavra e da imagem, e me encontro no enunciado levantado por Ítalo Calvino no capítulo Visibilidade do livro Seis Propostas para o Próximo Milênio (Companhia das Letras, 1990, 9ª ed.) – “como das palavras nascem as imagens e como das imagens nascem as palavras”.
ATUALIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS
A compreensão da caminhada como matéria poética – assunto recente na paisagem da arte contemporânea – abriu espaço para escaparmos da compreensão do corpo apenas em sua dimensão funcional e pragmática no dia a dia, já que o ato de caminhar é uma experiência atávica presente tanto no percurso da civilização como no de nossas vidas pessoais. Afinal, desde o nascimento até a morte, todos nós caminhamos – seja no plano físico ou existencial, em todas as metáforas possíveis!
O ato de caminhar em si entrou no próprio ato construtivo de minhas instalações, nas quais estico centenas de metros de linhas no espaço, indo de um ponto ao outro de forma ininterrupta, caminhando quilômetros dentro do mesmo local. Essa ação me acordou para o ato de caminhar como elemento construtivo de minhas instalações, indo ao encontro de experiências de escritores e artistas que, desde o Romantismo, têm evocado o ato de caminhar como matéria poética – de Charles Baudelaire a Henry David Thoreau, dos dadaístas e situacionistas aos artistas-caminhantes contemporâneos, grupo no qual, de certa forma, me incluo.
Minha atuação como educadora e artista é complementar, portanto organizei essas ações numa plataforma chamada Bagagem: Caminhada Como Prática Poética (http://bagagem-caminhada.com), cuja referência básica se dá pelo livro Walkscapes, escrito por Francesco Careri, organizando imersões dentro e fora de São Paulo, bem como pelo ciclo de palestras Base: Atravessamentos entre Corpo, Espaço e Tempo (que aconteceram durante o mês de outubro no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc), convidando pessoas de áreas distintas para abordar o assunto da caminhada em suas extensões.
Acredito que viver é muito perigoso, como disse Guimarães Rosa. Nossa travessia pelos tempos e espaços diários, implicados do nascer ao morrer, se complica bastante por conta de nossa busca constante e necessidade de conquista do que nomeamos como autoconhecimento, até por uma questão de sobrevivência física e existencial. Claro que a arte promove em nós o acesso a territórios mais densos e intensivos, que justamente ativam e ampliam o espectro do conhecimento nascido das nossas próprias experiências, intransferíveis. Entendo que o conhecimento e o autoconhecimento não existem de forma blindada e independente. A arte e a ciência, de formas bem distintas, nos estendem para o mundo, para as nossas infindas tentativas de decifrar a natureza em forma de linguagem. Aliás, a palavra consciência é irmã da palavra ciência, ou seja, conhecer com. A plataforma Bagagem é um convite para mapearmos esses territórios.
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