Postado em 29/11/2016
Compositor e apresentador, Rolando Boldrin fala sobre as mudanças que tem acompanhado na música brasileira nas últimas décadas
Além de compositor, músico, apresentador e ator, Rolando Boldrin é um contador de causos de primeira. Hoje com 80 anos, o artista natural de São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, começou a tocar viola na infância e formou a primeira dupla, Boy e Formiga, com um de seus irmãos, aos 12 anos de idade. Após se mudar para a capital paulista e se dedicar à carreira musical, gravou o primeiro álbum em 1974. Desde então, foram mais de 15 discos lançados, com canções caipiras, cateretês, toadas e modas. O mais recente, lançado em junho deste ano pelo Selo Sesc, reúne canções inéditas e marcantes na sua carreira. Na televisão, como apresentador de programas dedicados à música regional, passou por diversas emissoras e hoje comanda o Sr. Brasil, na TV Cultura de São Paulo, gravado semanalmente no Sesc Pompeia e exibido também pelo SescTV. Nesta entrevista, Rolando fala sobre música caipira, o gosto brasileiro pelos causos e influências externas nas sonoridades nacionais.
Como você vê a mistura entre a música brasileira e influências vindas de outros países?
Acho negativo. Não sou contra a música de fora. Música, já se diz há muito tempo, é universal, mas cada país, cada região, tem uma música de origem. Costumo dizer que, assim como cada país valoriza uma bebida de origem, cada país também tem a sua música. É como um bom vinho na França, uma vodca na Rússia, o rum no Caribe e a cachaça no Brasil. A cachaça é produto 100% nacional. Mas a música brasileira, com a influência de longa data em cima da música caipira, por exemplo, ela hoje está ameaçada de extinção, pois foi se descaracterizando.
Como essa música mudou?
O que tem se perdido é a música caipira legítima, verdadeira, como Pena Branca e Xavantinho [dupla que nos anos 1980 ficou famosa com a gravação de Cio da Terra, composta por Milton Nascimento e Chico Buarque]. Esse tipo de música caipira perdeu espaço na mídia, mas se surgisse hoje uma emissora que lançasse uma dupla assim as pessoas iriam gostar do mesmo jeito. Hoje o que ganhou espaço foi a música sertaneja, que usa recursos de apelo de amor e sexual nas letras. Se você pegar um Lupicínio Rodrigues, que eraum compositor de dor de cotovelo, ele tinha músicas de enredos fortíssimos, mas muito bem feitas como poesia. O Ataulfo Alves, que é um símbolo da música forte, também, com muita classe, como acontece em Infidelidade, uma obra-prima. Hoje, não há tanta preocupação com a poesia, e sim com o apelo da letra e com os grandes arranjos, grandes produções, pirotecnias, luzes, sons.
Na sua opinião, por que a música sertaneja dominou a música nacional?
Ela tem um apelo muito forte e é muito presente na grande mídia. Pouca gente atenta a isso, mas a palavra “caipira” passou a ser pejorativa na música. Os próprios músicos começaram a se denominar sertanejos, por acharem que caipira fosse sinônimo de jeca-tatu, de iletrado. Essa denominação “sertanejo” foi, então, sendo usada erroneamente, porque sertanejo na verdade é o nordestino, como Elomar, Luiz Gonzaga, Luiz Vieira. A imagem que foi criada do sertanejo para vender discos não é nossa, é uma imagem country, do faroeste dos Estados Unidos. Até muitas duplas famosas do sertanejo reconhecem isso e, às vezes, fazem um trabalho paralelo mais purista. O Daniel, que é um ótimo cantor, ficou conhecido por seu trabalho de música romântica, mas ele tem uma essência caipira e de vez emquando ele grava um disco com clássicos caipiras junto do pai. Chitãozinho e Xororó também já fizeram isso.
Essa mistura vem de tempos atrás, então?
Sim, vem de longe. Na década de 1980, uma vez fui fazer um show em uma cidade e antes de mim iria se apresentar uma dupla com um sanfoneiro, e eles foram fazer o show vestidos de mexicanos, porque na época era sucesso no Brasil um trio chamado Los Panchos. Mesmo antes, na época da Segunda Guerra Mundial, um grande artista que foi um dos primeiros a se vestir de faroeste para cantar foi o Bob Nelson, mas ele fazia isso de forma gaiata, em um tom de piada. Cowboy do amor foi composta pelo Wilson Batista, grande compositor de samba, e o Bob Nelson cantava nos shows fingindo que tirava o revólver e dava tiro para cima. Isso nos anos 1940, com influência do cinema estadunidense e dos grupos que apareciam nos filmes de faroeste. Eu sempre preferi algo mais purinho mesmo. Para ter uma ideia, Luiz Gonzaga, quando foi no meu programa, foi com uma camisa comum e sandália percata no pé.
Hoje, a música brasileira ligada à vida rural está diante de um mundo diferente, na medida em que as pessoas moram cada vez menos no campo?
Não sei se o campo vai morrer um dia. Ele se modernizou, com tratores, grandes colheitadeiras, mas quem se criou no interior sempre vai gostar de mexer com a terra, tem essa sensibilidade de ouvir o passarinho, de achar bonito um luar, achar romântico um entardecer, e vai trazer sempre isso na alma. Se for uma pessoa de talento para cantar, vai cantar o que sente. Não acho que isso é saudosismo. Nostalgia você vai ter sempre, mas esse carinho com a natureza vai se perpetuar. Na verdade, pode até ficar mais forte, já que as pessoas têm se preocupado mais com a comida que vem da terra e a industrializada vai perdendo espaço.
No seu programa, você foi um dos precursores das apresentações acústicas. Foi uma opção sua?
Sim, e eu insistia nisso. Enquanto a maioria dos programas usava playback, no meu era acústico. Fui muito criticado por, no meu programa, só levar acústico. Perguntavam por que eu não levava elétrico, e eu dizia que com um violão no meio de milhares de pessoas era possível cantar e agradar do mesmo jeito. Se é bonito um show de baixo acústico, como os estadunidenses usam até hoje nos shows de jazz, por que nós vamos ouvir um som elétrico? O elétrico é outra música, mas prefiro algo mais introvertido, mais puro. Hoje, isso se difundiu. O Gilberto Gil e o Caetano Veloso fazem show pelo mundo inteiro só com um violãozinho cada um, por exemplo.
Com o mundo digital, a venda de discos deixou de ser o principal sustento da música. De modo geral, hoje, para os artistas, há uma demanda maior por shows?
Percebi isso, sim. O artista hoje não vive mais em função de disco. Outro dia fiz um levantamento e vi que gravei em torno de 180 músicas. Mesmo assim, não entra dinheiro pelos discos vendidos. O artista hoje precisa fazer show, o que é muito mais gostoso, você tem contato com o público. Além disso, não tem como fazer um disco bom por ano. Para fazer um trabalho bem feito, com emoção, é preciso tempo.
Você é conhecido por contar muitos causos nos seus shows e no seu programa. De onde vêm essas histórias?
“Causo” quer dizer uma história curta, contada. Não é uma piada. É um fato acontecido com um terceiro, contado por um outro e com um desfecho engraçado. O brasileiro, seja da roça ou da cidade, gosta de ouvir ou contar um bom causo. Você encosta em um boteco no centro de São Paulo ou no interior, sempre vai ter alguém contando um causo. O Érico Verissimo dizia, em um verso, que “o homembrasileiro é milagrosamente um só de norte a sul, de leste a oeste, a despeito de suas distâncias geográficas, um só no que possui de essencial: a cordialidade, o horror à violência, a capacidade e dar-se e também de rir da vida dos outros e de si mesmo”. Peguei isso como símbolo do que acho que é o povo brasileiro e de quem é esse público do meu programa. Esses causos chegam até mim de vários jeitos. Muitas pessoas mandam sugestões e eu conto do meu jeito, incremento. Gosto de contar história e nunca decorada. É sempre improvisado. Eu só sei a história. Como eu vou contar, não sei. Vou contando de acordo com a reação da plateia, até chegar a um desfecho.
Nesses 35 anos em que realiza o seu programa, de quais momentos você se lembra com mais emoção?
Foram muitos, mas um momento muito interessante foi com o Raul Sampaio. Ele é de Cachoeiro do Itapemirim, terra do Roberto Carlos. Raul Sampaio era um compositor modesto, mas bem popular, vendia bem. Descobri que ele estava na terra dele e o convidei para fazer o programa. Ele veio com uma vozinha pequenininha, cantando baixinho, mas com tanta emoção que ele mesmo chorou e o público chorou com ele. O público não sabia que aquela música Meu Pequeno Cachoeiro, famosa na voz do Roberto, era do Raul. Foi um momento muito bonito quando ele cantou. Um momento emocionante foi com o Herivelto Martins e o Pery Ribeiro. Sem o Herivelto saber, levei o Pery para entrar de surpresa e cantar em dueto com o pai. Eu pedi ao Herivelto que cantasse Um Caboclo Abandonado e falei que tinha alguém lá pra fazer a introdução. Aí começou o clarinete lá fora do palco e veio entrando o Pery, filho dele. Quando vi o pai e o filho ali cantando a música, foi uma emoção danada. Gosto muito de trabalhar com a emoção.
Como foi a escolha das músicas que entrariam no seu mais recente disco, lançado neste ano?
Com tanta música gravada, eu achava que seria bobagem gravar outro disco novo. Mas, depois de dez anos, surgiu uma ideia que tinha a ver com o meu sentido. O disco se chama Lambendo a Colher. Lamber a colher é quando você saboreia tanto algo que ainda lambe a colher depois de comer. Esse tipo de música que procurei para colocar no disco são momentos de lamber a colher, momentos históricos da minha vida. São todas inéditas, curiosas. Por exemplo, o disco tem música inédita do Noel Rosa, tem outra música com letra psicografada do Noel Rosa em um centro espírita. Outra canção do disco, Quem Me Compreende, composta pelo Ary Barroso, é uma música de serenata que aprendi na juventude lá no interior, cantei a vida toda, mas nunca havia gravado. Só vim a descobrir que era do Ary agora, 60 anos depois. Só havia sido gravada por Araci Cortes há muito tempo.
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