Postado em 01/11/2016
Denúncia Vazia, 1979 - Direção: Adélia Prado (Arquivo pessoal)
Desde a primeira vez que foi ao cinema, Adélia Sampaio havia decidido que era aquilo que queria fazer. Assim que deixou a mineira Belo Horizonte, sua cidade natal, e chegou ao Rio de Janeiro, aos 13 anos de idade, sua irmã mais velha a levou para assistir Ivan, o Terrível. A sensação foi de mergulhar na tela, num universo mágico e cheio de possibilidades, mais para os outros que para ela. Mulher, negra e de origem pobre, trabalhou duro, fez contatos, conheceu amigos e criou oportunidades para ser a primeira mulher brasileira a dirigir um filme, mesmo sem espaço, reconhecimento ou lembrança, em uma área que, durante muito tempo, foi dominada por homens brancos de classe média e alta. Hoje, aos 72 anos, seu nome volta a ser lembrado e impulsiona seu desejo de continuar produzindo.
O que a levou a trabalhar com cinema?
Para mim, cinema é a janela do mundo e eu queria me debruçar sobre essa janela. Esse era o meu sonho. Um delírio, na verdade, porque não era nada fácil. Já adulta, desquitada e com dois filhos para criar, comecei a perceber que esse meu delírio teria que ser mesclado com muita responsabilidade. Eu trabalhava no comércio. Após golpe de 1964, minha irmã se tornou contadora em uma produtora de cinema, a Difilm. Em 1968, ela me conseguiu uma vaga de telefonista lá. Foi uma loucura. Tinha de passar ligações para um monte de gente, num telefone que, para dar linha, levava horas. Mas eu estava feliz de ouvir as conversas e os sonhos de todas aquelas pessoas do cinema, com várias ideias brilhantes, outras nem tanto. Com o tempo, fui assumindo responsabilidades na empresa, como a agenda de cineclubes, o faturamento da produtora e a assessoria do Mário Falaschi, que fazia o meio de campo entre a galera do Cinema Novo e os exibidores.
Onde aprendeu a fazer cinema?
Não tive formação acadêmica. Sequer tive chance de concluir o segundo grau. Minha mãe era empregada doméstica e me dizia sobre meu sonho: “Filha, quando se debruçar na janela do mundo me chame”. Então, eu fui me debruçar e me formei na escola do set. É lá, no set de filmagens, que percebemos se o plano resulta ou não. Durante minha trajetória, colecionei amigos em diversos setores do cinema. Adorava ouvir o cineasta Zé Medeiros falar da textura dos filmes. Nos tornamos grandes amigos, ele faleceu em meus braços. Zé foi muito importante para mim. Trocávamos receitas de quitutes e ele me ensinava o que não se deve fazer em um filme. Tive acesso também ao professor Eduardo Leone, da USP, com quem aprendi o segredo da montagem, de como guiar uma moviola, e noções básicas de roteiro. Quando larguei a Difilm, fui para a produtora de Willian Cobbett. Ali, convivi com muitos diretores, cada um com seu saber. Fui juntando conhecimento de uns e genialidade de outros.
Como foi para você, mulher e negra, fazer cinema nas décadas de 1970 e 1980?
Olha, não foi nada fácil. Na época, usava cabelo black e sempre que eu entrava na Embrafilme, os funcionários me olhavam com certa estranheza. Ajudou muito eu ter trabalhado ao lado do Mário Falaschi, porque através dele conheci pessoas chaves, que facilitavam meu trânsito. Mas Mário dizia: “Penteia esse cabelo, Adélia!” Eu sorria. Sempre me orgulhei de minha cor. O cinema é uma arte elitista, então para uma preta, pobre, sem formação acadêmica e filha de empregada doméstica, querer ser diretora é uma ousadia.
Como escolhe os temas?
Em geral, todos meus trabalhos têm como referência notícias lidas de jornais. Meu primeiro curta-metragem Denuncia Vazia, por exemplo, trata de um casal de velhinhos que, com dívidas no carnê de INPS, recebe uma denuncia vazia, procura um advogado e descobre que a lei é perversa. Sem saída, os dois voltam para casa, tomam um chá e se suicidam deixando um bilhete. Quando soube dessa história, fiquei revoltada e liguei para Rodolfo Arena, perguntando se aceitaria fazer o papel. Prontamente ele respondeu que faria e não cobraria. Chamei Catalina Bonaki para fazer a velhinha ela topou. Conseguimos um escritório no Largo do Machado, no Rio de Janeiro. Pedi que Regis Monteiro fizesse a cenografia, juntei o meu povo e em dois dias rodamos.
Você foi a primeira mulher negra a dirigir filmes no Brasil, mas pouco se fala sobre você. A que se deve isso?
Sinto que estão sempre tentando apagar a minha história e estou sempre reescrevendo ela. Guardei os negativos dos meus curtas no MAM, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e eles desapareceram. Creio que se Cosme Alves Netto, ex-diretor da Cinemateca do MAM, estivesse vivo, ele moveria fundos para encontrar meus materiais. Era uma das pessoas mais lindas e sem preconceitos que conheci, um grande incentivador de pessoas ousadas como eu.
Em 1984, você dirigiu Amor Maldito, um filme com temática lésbica baseado em uma história real. Como foi a repercussão do público e da crítica?
Para conseguir exibir o filme em São Paulo, tive que travestir o filme de pornô. Na ocasião, o exibidor me disse: “Adorei o filme, mas estamos na era do pornô!” Conversei com os atores e, com o consentimento deles, lançamos. Leon Cakoff não gostou do que fizemos e sua crítica falou exatamente do absurdo em ter travestido o filme, mas foi a maneira que encontramos para que fosse exibido na cidade. Já no Rio, não tivemos problema. Foi uma maravilha. Ele foi exibido nos cinemas da Cooperativa, programados por minha irmã, durante a gestão do Leon. Fomos convidados para exibi-lo também no festival de cinema Gay de São Francisco, mas, para o filme sair, tínhamos que conseguir uma passagem, pela Embrafilme. Foi punk. Entreguei toda a papelada e, para minha surpresa, mandaram o filme Asa Branca, que não abordava sequer a temática. Mais uma vez, entendi que ser pobre e preta no cinema dá nisso. Para realizar Amor Maldito, contei com o sistema de cooperativa entre todos os participantes. Tive a honra de a segunda câmera ter sido feita por Zé Medeiros. No fim, deu tudo certo. O filme, na segunda praça, já havia sido pago.
Como você vê a presença e representatividade do negro no mercado cinematográfico brasileiro?
Tanto uma como outra são fraquíssimas. Na cabeça de muitas pessoas, preto é para fazer parte da turma da pesada, fazer trabalho braçal, pegar peso e aceitar ordens. O Cinema Novo foi responsável pelo surgimento de diversos pretos na ala artística. No último Festival de Cinema do Rio, assisti ao filme Cinema Novo, dirigido por Eryk Rocha, filho de Glauber, e fiquei surpresa e feliz ao ver uma preta no palco como coordenadora de produção. Da plateia, senti orgulho por ela, percebendo que a caminhada é lenta, mas um dia isso vai mudar.
Há espaço para a mulher no audiovisual?
Hoje, temos mulheres mostrando a sua cara, a sua arte e seu pensamento, mas, é claro, em um espaço cavado arduamente. Um dos meus próximos projetos, inclusive, fala sobre isso. Alerto para o detalhe de que na era pós-Collor, quem reaqueceu o cinema brasileiro foram as mulheres.
Aos 72 anos, você continua na ativa. Consegue fazer um balanço de sua trajetória?
Sim. Sigo na estrada e a estrada segue. Minha idade me faz crer que vale à pena. Criei dois filhos, hoje bem sucedidos. Realizei os filmes que acreditei e farei outros. Consegui debruçar na minha tão sonhada janela e fico triste por minha irmã não estar entre nós. Ela ficaria orgulhosa e feliz. Recentemente, fui tirada do armário junto com as vassouras velhas, por uma historiadora que, em pesquisa, descobriu que sou a primeira afrodescendente a dirigir um longa-metragem no Brasil. Essa informação tem me feito viajar exibir meu trabalho e debater as dificuldades do ontem e do hoje. O meu filme Amor Maldito, de 1984, discute homofobia, violência doméstica, religião e a violência dos tribunais. São temas atuais. Descobri que o que me levou a fazer o filme na época mudou muito pouco. Eu me preocupo com as emoções e os seres humanos e é neles que levo fé.