Postado em 07/10/2016
Vivemos num tempo visual por excelência. As pessoas antes de tudo, e em primeiro lugar, veem o que as rodeia. Tudo. O tempo todo. Esgotam sua curiosidade no ato de percorrer com os olhos a tela do celular, do notebook, da TV (no caso dos mais velhos). A tal ponto que, ao fecharmos os olhos, parece que desligamos do mundo – e de nós mesmos, dissolvendo-nos numa geleia geral disforme, já que nossa identidade, em certa medida, pauta-se pelo acesso visual que temos ao mundo. É esta a régua pela qual nos medimos. Esqueçam o “penso, logo existo” cartesiano; hoje vigora o “vejo, logo existo” nesta era vertiginosa do pós-tudo.
E o ouvido, como fica nesta civilização tão saturada de lentes óticas (não ópticas, porque com o “p” adentramos o reino dos nossos esquecidos, maltratados aparelhos auditivos)?
Ouvidos, coitados, não têm pálpebras, portanto estão sujeitos a todo tipo de sons. Desejáveis ou não, insuportáveis, belos, feios, estranhos. Mais: quando ouvimos música, precisamos abrir mão de nosso tempo e entrar no tempo da obra musical. E se ela é nova, então, além de renunciar ao nosso pulso temporal, precisamos ainda nos armar de paciência. Thomas Mann (1875-1955) “criou”, no romance Doutor Fausto, uma série de obras musicais fictícias para seu personagem Adrian Leverkhun, calcadas na produção do revolucionário compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1954). Já o francês Marcel Proust (1871-1922) “criou” a célebre Sonata de Vinteuil no monumental ciclo romanesco Em Busca do Tempo Perdido baseado numa obra musical de carne e osso, a Sonata para violino e piano, de César Franck (1822-1890). Pela voz de um dos personagens, Proust afirma que frequentemente não entendemos nada na primeira audição “quando a música é um pouco complicada”. Só a “conheceremos perfeitamente”, aconselha-nos, “depois de ouvi-la duas ou três vezes”.
Ou seja, a música precisa ficar memorável para nossos ouvidos para ser compreendida. Ou seria sentida? Num aforismo muito conhecido, Nietzsche diz que “é necessário aprender a amar” a música: “É preciso aprender a ouvir uma figura, uma melodia, saber discerni-la pelo ouvido, distingui-la, isolá-la e delimitá-la: em seguida, pratica-se o esforço e a boa vontade de suportá-la, apesar de sua estranheza, ter paciência com sua expressão, ternura, enfim com o que ela tem de singular; chega, afinal, o momento em que nos habituamos, onde esperamos, onde sentimos que ela nos faria falta; daí em diante, ela exerce seu fascínio até fazer de nós humildes e arrebatados amantes”.
O checo Milan Kundera, 87 anos, um íntimo da música como Proust e Mann, comunga com o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1890) este culto do sentir: “Por mais que [o compositor russo Igor] Stravinsky (1882-1971) rejeite a música como expressão dos sentimentos, o ouvinte ingênuo não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música, seu lado burro. Basta um violinista tocar as primeiras três notas de um Largo para que o ouvinte sensível suspire: ‘Ah! Que bonito!’ Nada, não há nenhuma invenção ou criação nestas três primeiras notas que provoque a emoção”.
Afinal, a obra musical só se completa, após ser composta, no ato da sua interpretação – e isso acontece onde? Nos ouvidos de quem assiste à performance. O ouvinte funciona, então, como “coautor”, pois só ele lhe dá um sentido por meio da escuta. Ler é um ato semelhante, como acentua Roland Barthes: ler é “reescrever o texto da obra como se fosse o texto de nossa vida”. Mas a leitura pode ser feita a qualquer tempo, em qualquer lugar. A audição não: você precisa entrar no tempo específico da música. E mergulhar nela de tal modo que ela se transforme em “sua”.
A música, então, só se completa mesmo quando a ouvimos ou assistimos em concerto. Epa! Deixei escapar a palavra mágica “assistimos”. Ou seja, o processo de aproximação da obra de arte musical que descrevi acima simplificou-se muito no século XXI. Se a televisão já existia nos idos de 1950, é igualmente correto dizer que só agora, no século XXI, os telespectadores se libertaram de três ou quatro canais abertos que fizeram as cabeças, ouvidos e olhos de gerações mais velhas (como a minha, confesso).
De todo modo, mesmo nós, mais velhos, já assimilamos as delícias da civilização visual. E temo que poucos depois de nós ainda sejam capazes de uma escuta ativa da música sem que haja apelos visuais. Mas também não é o caso de cairmos na ladainha dos velhos tempos, aqueles sim é que eram bons...
Nada disso. Estamos no melhor dos mundos. Até o final do século XIX, o cidadão gostava de uma música que ouvia num concerto e só tinha uma chance de voltar a ouvi-la: tocando ele mesmo um instrumento. Os concertos eram raros a ponto de, por exemplo, o compositor vienense Franz Schubert (1797-1828), autor de mais de mil composições e nove sinfonias, não ter tido a chance de ouvir nenhuma de suas obras orquestrais em sua vida (curta, reconheça-se, só 31 aninhos).
Com a invenção da reprodução fonográfica na passagem dos séculos XIX/XX, passou-se a privilegiar o ouvido como porta de entrada da música em nossos corpos e mentes. Aos poucos, deixamos de passar pelo aprendizado do instrumento; contentamo-nos em colocar os discos – dos 78 rotações aos CDs – nos players. Com a massificação do audiovisual e o barateamento dos custos para se fazer não só uma gravação em áudio mas também em vídeo, chegamos ao nirvana.
Agora, podemos ver e ouvir a música. Músicos em ação, belos sons. Mas como é que aquele cidadão tira sons daquele instrumento esquisitão, comprido com uma piteira na ponta? E o som, como é gaiato. O que é aquilo?
Perceberam? Estamos fazendo o caminho inverso. Agora nos aproximamos da música via o audiovisual, em que nossos nervos ópticos se impressionam simultaneamente às nossas retinas. E sabem por que fechamos este ciclo virtuoso agora, na segunda década do século XXI? Porque é memorável o impacto de assistir ao modo como um clarinetista desmonta seu instrumento e exibe diante das câmeras como funciona a palheta que lhe dá seu DNA, seu timbre, ou “cor”. Um timbre belo a ponto de levar Mozart (1756-1791) a compor um quinteto e um concerto para clarinete estonteantes; fez o sucesso planetário de Benny Goodman (1909-1973), nos anos 1930; e hoje está presente, por exemplo, num quinteto que só o Brasil poderia produzir: o Sujeito a Guincho, capaz de tocar em meio instrumento.
Siderados por estas “descobertas” visuais e auditivas, vamos saber, então, como estudar estes instrumentos tão maravilhosos; com quem estudar; como comprar; quanto tempo é necessário para alcançar um nível profissional; quais as chances de se sobreviver dignamente tocando clarinete, nosso exemplo. É hora, então, de retornarmos ao nível da leitura. E acompanhar cada um dos instrumentos das madeiras – flauta, fagote, clarinete, oboé e saxofone –, desde seus partos, suas melhorias construtivas e seu estágio atual. Conhecer os maiores instrumentistas, de ontem e de hoje, da música clássica e das populares; os compositores.
Que lindo ciclo virtuoso conseguimos fechar nesta nossa civilização audiovisual. Podemos percorrer inversamente a evolução histórica. Antigamente partia-se do aprendizado do instrumento para fazer a música que se só se podia ver ao vivo. Hoje, partimos do concerto, do show, da “rave” tribal, capturados, deglutidos sensorialmente por olhos e ouvidos. E, aos poucos, chegamos ao desejo irresistível de aprender a tocar um instrumento. Para crianças e adolescentes, são oportunidades raras de fazer da música uma incrível profissão pela vida inteira. Quanto a nós, de gerações anteriores, asseguro-lhes que não existe prazer maior na maturidade do que dedilhar um piano, soprar um clarinete, ou tocar com o arco as cordas de um violoncelo.
Sabiamente, aliás, Caetano, em “Tigresa”, nos emociona com o verso final: “Como é bom poder tocar um instrumento”.