Postado em 01/08/2016
por João Anzanello Carrascoza
Do quarto onde estava, encolhido na cama de casal, o rosto ensopado de tristeza, o homem tentava decifrar os sons que vinham da sala, e logo entendeu que a mulher se pusera a fazer o que, no fundo, nenhum dos dois queria, mas o que, em poucas e dilacerantes palavras, haviam decidido. Ela iria embora, estava já recolhendo suas coisas e, de propósito ou não – porque sabia que, daquela forma, o machucaria mais –, começara por retirar da estante os livros que lhe pertenciam e que, meses atrás, se alegrara ao misturar com os dele. Ambos se lembravam que, ao organizar juntos a nova biblioteca, quando se deparavam com exemplares de uma mesma obra – um dele, outro dela –, haviam resolvido, sem hesitação, doar para a escola do bairro aquele que tivesse menos marcas pessoais. Naqueles dias, tinham a certeza maciça de que jamais se separariam. Mas, agora, seria preciso dividir também essas perdas, pequenas até se alinhadas com aquela maior, que cada um teria de absorver inteiramente para si. E, como se fosse pouco segurar no dique frágil de seu corpo a angústia que nele se debatia, e reconhecendo que nela essa barreira era ainda mais vulnerável, o homem se levantou para ajudá-la. Em silêncio, ao contrário da algaravia que haviam produzido ao colocar tempos atrás os livros na estante, foram retirando um a um, para conferir quem era de fato o seu dono – até minutos antes, eram ambos –, e, conforme a tarefa progredia, grandes vazios iam nascendo nas prateleiras e revelavam, como se estivesse oculto por um véu, o espelho futuro diante do qual, com o passar dos dias, aos poucos, eles veriam, enquadrada, a imagem de sua própria solidão. E, para tornar menos insuportável a dor, ele começou a fazer, aqui e ali, algum comentário sobre os livros que passava a ela, este não é muito bom, ou o título tem tudo a ver com o que estamos vivendo, e a mulher, em concílio com ele, pelo menos naquele ponto, apanhou aquela linha de conduta e foi tecendo também umas observações, esta capa é linda, ou, este dicionário foi você quem me deu, posso levar?; e o homem, unindo-se a ela pela conversa, o que não parecia mais possível por meio de outra linguagem, respondeu, sim, pode levar, vai ser mais útil pra você. E, então, ela, de repente, folheando um romance e borrando a página aberta com as lágrimas, disse, adoro esta história; ele se manteve mudo, preso à história de ambos, sem saber com quais palavras poderia salvá-la deles mesmos, dos erros que continuavam a cometer, embora desejassem acertar. A quantidade de livros era modesta, a soma do que possuíam era bem menos do que haviam lido, assim como o clima de luto ali instaurado desmentia o quanto, um dia, haviam sido felizes, e, por sorte, eles não se demoraram muito nessa tarefa que deixou, como saldo, umas poucas colunas de livros, na vertical, a um canto da sala, e outras, com falhas, horizontais, nas prateleiras da estante – um quadro brutal para os dois reconhecerem, ao erguer a vista, a sua atual condição de separados. Em seguida, a mulher foi para o quarto pegar as roupas, e ele, a fim de ser como nem sempre fora, atencioso e doce com ela, seguiu para o outro quarto, de visitas, ao lado, onde, em cima de um armário, guardavam as malas que só usavam para as grandes viagens – e, como eram raras as grandes viagens, uma membrana de poeira pairava sobre as malas –, e, apesar de todo o seu ser se opor àquele instante (ele o anularia com a força total de seu desejo, se fosse possível), seus braços se levantaram ao máximo e trouxeram para o chão as duas malas, insuficientes, era verdade, para conter as roupas dela. Mais hábil e organizado nesse quesito, ele foi ajeitando nas malas, com muito zelo (zelo com que, nos últimos tempos, sem perceber, deixara de tratá-la), as roupas que ela transferia das gavetas para a cama, cuidando para não as amarrotar, como se devessem ser tocadas com reverência por serem de quem ele amara, ou por ele as ter apreciado no corpo dela e, tantas vezes, as ter tirado com as mãos apressadas do desejo. Na tarefa de fazer as malas para a mulher, ele não se sentiu tão usurpado, aquelas roupas eram dela, ali estava um dos poucos trechos dos dois que não se haviam entrelaçado, e no qual cada um ainda mantinha a sua unidade preservada. Depois de recolher as roupas e os calçados, a mulher foi apanhar uns objetos no banheiro, que igualmente pertenciam a ambos, embora ela usasse alguns mais do que ele, como os xampus e os condicionadores, ou ele quem costumeiramente os comprasse na farmácia, como os colírios e os enxaguatórios. Mas havia aqueles que eram propriedade e usufruto inegáveis dela, como os frascos de perfume feminino – os dele, sobretudo os de odores cítricos, ela, às vezes, também gostava de usar em si –, e ele, ao vê-la hesitar diante daquela Acqua de Giorgio, pela metade, sua imobilidade dando mostras de que ela queria (mas não devia) continuar aspergindo, na própria pele, um aroma associado a seu (já não mais seu) homem, ele disse, pode levar o que você quiser. E, de fato, ficou satisfeito, quando ela, rápida, apanhou o perfume, como se colhesse uma fruta no pomar alheio, ao contrário da sensação de perda que experimentou quando ela pegou a tesoura (ele usava para aparar o bigode e a barba) e a botou no nécessaire, a tesoura ia lhe fazer falta, a tesoura lembrava que era feita para cortes, duas lâminas emparelhadas, presas a um mesmo eixo, prontas para rasgar tanto os fios da seda quanto os de tecido rústico. Outros objetos, por sorte pequenos, ainda havia entre aquelas paredes, que eram totalmente dela, embora ele já estivesse habituado a senti-los seus, como a cópia de uma gravura de Amilcar de Castro (na qual duas cores se borravam, o lilás e o vermelho, perdendo, uma na outra, seus próprios limites, numa suave fusão, justo o oposto do que, àquela hora, ali acontecia). Mas também havia coisas que eram de ambos em igual medida, como os vasos de violeta, que ele comprara, mas ela quem os regava: quando viu a mulher se aproximar dos vasos e vacilar, por um instante, se deveria ou não os levar, o homem disse, pode pegar, as violetas vão morrer se você deixá-las aqui, ao que ela aquiesceu, movendo a cabeça, as flores diante de seus olhos, mudas, pedindo que as poupassem da água a escorrer deles. Alguns outros pertences, dispersos pela casa, ela ainda juntaria, a velha almofada na qual acomodava a cabeça, deixando à mostra a nuca que atraía os lábios dele, uma caneca, uma caixa de incenso, uns nadas que, no entanto, iriam ganhar, dias depois, naquele espaço – ele era experiente para saber –, a força dos grandes vazios. Vazios, que também ela não ignorava, ficariam em seu espírito, ainda que levasse, com a ajuda dele até o carro na garagem, tudo aquilo que, havia pouco, só tinha sentido por estar ali, a tecer e a fiar – trama bem urdida – a rotina de ambos. Ajeitaram as coisas no porta-malas e no banco de trás; e ele, sentindo que, um a um, cada ponto de sua dor se esgarçava, foi logo abrir o portão. Ela não entrou no carro imediatamente, permaneceu em pé, à espera de que o abismo desse o passo final em sua direção. Ele, então, acercou-se dela – e a abraçou. Os corpos eram um só texto vivo, as linhas do presente e as ocorrências do passado emaranhadas rigidamente umas nas outras. Ali estava o ponto nodal. Ela recolhera pela casa o que era mais dela, ou menos dele. Mas como separar os fios espessos, quase cordões, daquele tecido, único, feito de sangue e sonhos dos dois?
João Anzanello Carrascoza é escritor e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado e doutorado. Autor dos romances Aos 7 e aos 40 (Cosac Naify, 2013) e Caderno de um Ausente (Cosac Naify, 2014) e dos livros de contos Espinhos e Alfinetes (Record, 2011) e Amores Mínimos (Record, 2012).