Postado em 01/08/2016
Professor fala sobre convivência, sociabilidade e lazer em uma metrópole como São Paulo
Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), José Guilherme Magnani é mestre em Sociologia pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, no Chile, e doutor em Ciências Humanas (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP). É coordenador do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, organizador e autor de livros como Jovens na Metrópole: Etnografias dos Circuitos de Lazer, Encontro e Sociabilidade (Editora Terceiro Nome, 2007 – org. com Bruna Mantese), Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade (Hucitec, 2003 – autor), Expedição São Paulo 450 anos: Uma Viagem por dentro da Metrópole (Secretaria Municipal de Cultura/Instituto Florestan Fernandes, 2004 – org.). Nesta entrevista, José Guilherme fala sobre sociabilidade, lazer e outros temas ligados à dinâmica cultural urbana.
Segundo o último Censo, o Brasil tem 84% da população vivendo em cidades. O que isso pode significar para o país?
Primeiramente, temos que lembrar que nem toda cidade é da escala de São Paulo. Existem cidades de escala pequena, média, que fazem parte de um processo de urbanização generalizado. Isso é uma tendência no mundo todo. No entanto, existem formas de vida em cidades médias e pequenas que são urbanas, mas mantêm um estilo de vida diferente do da metrópole. Acabei de fazer uma pesquisa com o grupo dos meus alunos de Etnologia Urbana na Amazônia, em cidades ao longo da calha do Rio Solimões que têm em torno de 50 ou 60 mil habitantes. Então, não é possível generalizar o modo de vida urbano quando se têm escalas diferenciadas. Manaus tem 2 milhões e meio de habitantes, mas não se compara aos 17 milhões da Grande São Paulo. A minha proposta de trabalhar com circuitos na cidade é que as pessoas estão circulando entre diversos lugares, mantendo vínculos com diferentes espaços. Não é como há algum tempo, quando as pessoas vinham do Nordeste, ou do interior do Estado, chegavam a São Paulo e pronto. Hoje, as pessoas vão e voltam o tempo todo, mantêm vínculos com os lugares de origem por meio das redes sociais, da maior facilidade de transporte.
Esse exercício é incentivado e cultivado em uma cidade como São Paulo?
A cidade acolhe, tem equipamentos, condições e espaços para que grupos e coletivos se apropriem da cidade desde seus vários pontos de vista. Não são grupos em forma de gueto, fechados, mas em determinados momentos eles marcam, sim, as suas diferenças. Membros do Núcleo de Antropologia Urbana fizeram uma rápida etnografia no Dia de Finados no cemitério da Vila Formosa. Chegamos lá e havia grupos de bolivianos realizando seus rituais, adeptos do candomblé fazendo os seus, evangélicos, católicos, umbandistas, cada qual se apropriando desse dia de acordo com seu modo de vida e a sua convicção. São Paulo não é uma cidade de muros, e sim de trocas, e só mesmo uma grande cidade permite isso. Em núcleos urbanos menores, os lugares são mais marcados, com controle social maior. Uma cidade da escala de São Paulo, como foi possível constatar, permite o exercício de religiosidades diferentes, possibilita um trânsito religioso muito maior.
Como você vê a experiência da convivência entre as pessoas que vivem na Grande São Paulo, hoje com cerca de 17 milhões de habitantes?
Em uma cidade do tamanho de São Paulo, quando se analisa do ponto de vista da Antropologia, começa-se a perceber experimentos muito interessantes. Às vezes não são muito disseminados, mas são experimentações de encontro e sociabilidade. Do ponto de vista do senso comum e da mídia, uma metrópole da escala de São Paulo é marcada pelo desencontro, pela fragmentação, pela dificuldade de comunicação interpessoal. No entanto, quando se observa de perto e de dentro, que é a perspectiva do método etnográfico, o resultado é outro: de longe e de fora, percebe-se apenas uma mancha imensa onde não se destacam regularidades de comportamento. Quando a gente se aproxima e chega mais perto dos atores sociais e da maneira como eles vivem na cidade, começa-se a perceber regularidades. Então é possível identificar, do ponto de vista da antropologia, modos de vida, encontros e trocas na cidade.
Em 2004, você fez parte de uma experiência com a prefeitura de São Paulo chamada Uma Viagem por dentro da Metrópole. O que foi possível perceber?
Mesmo olhando a cidade de cima de um prédio considerado como um dos mais altos, no centro, o Edifício Martinelli, parece que São Paulo não tem fim, dimensão ou contornos definidos. No entanto, se a gente começa a acompanhar os diferentes grupos que circulam pela cidade, é possível constatar ordenamentos. Da mesma forma que outras grandes metrópoles contemporâneas, uma cidade do tamanho de São Paulo, à primeira vista, dá a ideia de certo caos urbano. À medida que a gente começa a olhar com outro tipo de foco, porém, começam a aparecer diferentes arranjos de convivência, de trabalho, de sociabilidade, de formas de utilizar os espaços públicos. Foi possível registrar, naquela ocasião, inúmeras e criativas estratégias de apropriação da cidade. Do ponto de vista da antropologia urbana, algumas categorias permitem dar conta dessas diferentes modalidades, como a categoria das manchas urbanas.
O que seriam essas manchas urbanas?
A mancha é um recorte na paisagem urbana que acolhe pessoas de diferentes procedências, mas com o mesmo estilo de vida, gosto. Se considerarmos a mancha urbana do Largo do Arouche, por exemplo, observa-se um espaço bastante frequentado por homossexuais. Mesmo quem não tenha essa orientação, terá de respeitar o modo de ser dos frequentadores habituais dessa mancha específica. Na Vila Madalena há outra mancha de lazer e encontro, com bares, cafés etc. – e assim por diante. Ou seja, em vez de uma cidade vista na chave do caos, da fragmentação e do desencontro, o que se tem são espaços com regras de convivência específicas, os pedaços, manchas, trajetos, circuitos. Os trajetos que um cinéfilo faz em São Paulo, por exemplo, configuram um circuito específico, o dos cines de arte. Ou seja, essas categorias ajudam a evidenciar a dinâmica da cidade em diferentes níveis e mostram formas diferenciadas de circular por elas. Nada a ver com gueto, um lugar fechado, inclusive territorialmente, onde não se pode entrar a não ser que seja um iniciado. Já essas unidades de que falei são porosas, são mais abertas. A metrópole permite que cada um viva a sua individualidade e também possa estar entre os seus.
Observando a sociedade e os poderes constituídos, você diria que a legislação entra em confronto com essa liberdade que uma cidade como São Paulo pede?
O poder público tem como dever de ofício fazer mediações. Os grupos sociais querem fazer valer as suas diferenças, então pode chegar um momento em que a discussão e o contato não se dêem pelas vias habituais, sendo preciso a intervenção de uma terceira instância, que é o poder público, para estabelecer normas legais e públicas de convivência. Isso é preciso porque, do contrário, vingaria de certa maneira o exercício do mais forte, aquele que tem mais poder econômico, político etc. Ora, o poder público, em suas diferentes instâncias, tem a missão de fazer a mediação e estabelecer normas que são republicanas e iguais para todos, para que a convivência possa se dar para além do privado. Por isso é que existem, mesmo em um condomínio, regras comuns, por exemplo.
Em meados dos anos 1980, houve a explosão dos condomínios, os muros altos, as grades e esse isolamento em São Paulo. Como você entende esse fenômeno dentro da cidade?
Foi a saída que alguns segmentos utilizaram para poder se defender de um certo espaço público no qual se sentiam inseguros. Uma economista norte-americana chamada Jane Jacobs usa a expressão “balé das calçadas” em sua análise das cidades norte-americanas na década de 1960 e mostra que o que traz proteção, na verdade, é a presença no espaço público, e não o isolamento. Quando as pessoas se isolam, elas têm que criar equipamentos para se proteger. Quando se está no espaço público, os múltiplos olhares estabelecem padrões de proteção. Veja-se o exemplo da Avenida Paulista, atualmente. Lá, é possível observar a rua, a diversidade, gente de todas as gerações e procedências se exibindo, se mostrando, apreciando, diferentemente da forma que ocorre dentro de um shopping center, por exemplo.
Muitas vezes, parece que São Paulo é uma cidade onde a indústria não existe mais, o comércio e a moradia se confundem nos espaços. Por que isso acontece?
Essa divisão fazia parte do projeto modernista de cidade, que a separava em cinco funções: moradia, trabalho, circulação, lazer e espaço público. Isso acabou. A proposta hoje é entremear essas funções de tal maneira que, muitas vezes, em um bairro haja a presença de todas elas. Isso é uma tendência, e há exemplos de espaços onde isso ocorre, nem sempre harmonicamente. A Vila Madalena, por exemplo, é um lugar de moradia, comércio, lazer, mas há momentos em que uma função se sobrepõe à outra e há conflitos. Por isso, então, é preciso intermediar com regras claras.
No caso de São Paulo, a impressão é que parte da população procura não conviver com os outros e briga por regras que a protejam, como os condomínios, o carro, o bairro fechado, as ruas fechadas. Como você entende isso?
Não se pode generalizar, para um local com 17 milhões de habitantes, como é a Grande São Paulo. Contudo, é impossível haver uma norma só. A cidade permite a existência de grupos de pessoas diferentes, com modos de vida compartilhados entre os seus iguais, com certas regras, mas no espaço público essas pessoas terão que conviver com outras. A chamada cultura urbana é uma espécie de etiqueta por meio da qual pessoas que não se conhecem, não sabem os gostos, a religião, o partido político uns dos outros, possam conviver. Trata-se de mínimas regras que precisam existir no espaço público para que haja essa convivência. Do contrário, é conflito direto.
Como se dá a relação das pessoas com os espaços públicos em uma cidade como São Paulo? Isso ocorre a despeito do poder público?
Há diferenças. Nos espaços públicos do centro da cidade, há determinadas formas de uso e apropriação. Em regiões de periferia mais longínqua, há outras normas. Não há uma regra só. As pessoas estabelecem formas de convívio de acordo com a paisagem na qual estão inseridas. Por exemplo, há espaços em São Paulo que estão sendo apropriados por coletivos, como o Largo da Batata ou o Minhocão. Nesses espaços houve mudanças, grupos se apropriaram deles e agora estão negociando formas diferentes de uso. Isso está se multiplicando pela ação de grupos de jovens, principalmente pessoas que querem mostrar que esta cidade é de todos. E para tanto se utilizam das redes sociais, dispositivos que permitem contatos muito rápidos e assim consolidam os respectivos coletivos e suas estratégias.
Temos visto também ocupações e diferentes formas de lazer na cidade. Isso é um fenômeno recente?
A diversificação das formas de lazer é um fenômeno crescente no espaço público. Claro que os lugares convencionais de lazer são consagrados, mas algo muito interessante que está na inventividade do usuário, do morador, do ator social é a apropriação da cidade para o lazer. São exercícios muito criativos na medida em que o espaço público pode ser apropriado para um fim diferente daquele para o qual ele foi criado. Temos exemplos em São Paulo, como é o caso de edifícios ociosos por uma questão de especulação imobiliária nos quais há uma ocupação por parte de moradores sem-teto e também a apropriação por coletivos voltados para práticas artísticas: a troca entre pessoas que ocupam por necessidade e outros que ocupam por lazer, juntos no mesmo espaço.
Como antropólogo, olhando São Paulo, você diria que é um exemplo de bons resultados sociais de convivência?
Naquela expedição Uma Viagem por dentro da Metrópole, que fizemos em 2004, a minha conclusão foi que a cidade, apesar de todas as dificuldades, funciona. Parece ser uma boutade, mas funciona por causa da criatividade dos seus atores sociais. A despeito dos seus problemas de ordem estrutural, ela consegue, na sua dimensão e na sua escala, acolher os diferentes. Existe uma ideia bastante corrente de que a globalização vai homogeneizando tudo. Entretanto, a contrapartida a essa tendência é a persistência da diferença. Uma cidade cosmopolita como São Paulo possibilita o exercício da diferença mais radical, e é isso que faz com que ela continue viva, pulsante. Não vai se tornar igual para todos, acolhe as diferenças. Nesse sentido, quanto mais diferentes forem as habilidades, símbolos e tradições de seus parceiros de troca, mais interessante, viva e atrativa ela será.
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