Postado em 27/06/2016
“Somos palhaças numa busca incessante por encontros. Encontros com as pessoas que moram nesse mundo e que têm diversas formas e maneiras de viver. Temos ânsia por novas palavras, por novos gestos. As palavras sempre estiveram aí, assim como os gestos de cada lugar. Nós é que estivemos por muito tempo num mesmo lugar. Quando você se movimenta e caminha para novas terras, as palavras te fisgam, novos gestos se mostram. (...) Nas terras paulistanas nos conhecemos e descobrimos que tínhamos o mesmo desejo de reconhecer o Brasil de dentro. Juntas, tínhamos a inquietação, a vontade de construir um caminho irreal por esse Brasil real. Em 2006, partimos para a nossa primeira viagem e agora chegamos ao fim de nossa segunda jornada percorrendo alguns lugares desta vasta Amazônia. Somos palhaças e nos interessa inverter a realidade, para isso tínhamos que conhecê-la. Assim seguimos na nossa busca incessante por encontrar.”
O trecho retirado do diário de viagem da dupla de palhaças Bifi e Quinan, em outubro de 2009, resume as motivações que inspiraram a trajetória de 10 anos das artistas Juliana Balsalobre e Marina Quinan, que após a experiência em hospitais da cidade com o grupo Doutores da Alegria, decidiram vender tudo e viajar pelo Brasil para apresentarem-se em lugares de difícil acesso, como aldeias indígenas, comunidades quilombolas e diferentes regiões do país, onde ninguém esperava pela presença de palhaços. Dessa forma, a dupla foi descobrindo o que há de universal no riso e o que há de mais genuíno na relação com o outro.
Nesta entrevista, a dupla conta a história dos lugares que passaram e também a bagagem que levam depois da vivência nesses diferentes brasis.
EOnline: Contem um pouco da trajetória de vocês: o porquê dessa ideia de viajar e conhecer outra regiões?
Marina Quinan: A gente se conheceu estudando teatro, em 1994, no Teatro Escola Célia Helena. Saímos da escola e participamos de grupos de teatro de rua e sempre no final sobrava eu e a Juliana. Depois, a gente se reencontrou no Doutores da Alegria, aqui em São Paulo, onde a gente trabalhou por nove anos. No Doutores, todo ano troca a dupla e troca o hospital. Em um desses revezamentos, a gente ficou como dupla de palhaças e começou a levantar material e fazer algumas pesquisas. A gente sempre teve vontade de conhecer melhor o Brasil e levar o teatro para quem não tem acesso. E, em um determinado momento da nossa vida, a gente resolveu viajar. Vendemos carro e tudo que tínhamos e fomos viajar. Começamos pelo Ceará, pelo Maranhão e chegamos ao Pará, em 2006, num projeto que chamava “Brasil na Cabaça”. Tudo por conta própria. A gente ia produzindo a viagem ao longo da própria viagem. Ouvíamos falar de alguém que tocava um instrumento especial e íamos ao lugar ou visitava uma cidade que chamava Cabaceira ou ia atrás de festa popular. Até que a gente chegou no Pará, em Santarém, que foi a nossa porta de entrada para a Amazônia e moramos lá por sete anos.
EOnline: E qual foi o maior desafio de vocês por esses brasis? Como vocês trabalhavam o humor em meios às diferenças culturais?
Marina Quinan: Era diferente porque nesses lugares o teatro não é estabelecido. Muitas comunidades têm festas que são teatrais, mas são festas que todo mundo encena junto. Não tem esse código de uma peça que vai ser apresentada para um público que assiste. Então, a gente sempre considerou que a gente levava uma brincadeira. A gente fazia uma brincadeira junto com as pessoas.
Juliana Balsalobre: No caso, o desafio é você estar viajando, conhecendo um lugar que é novo e assimilar tudo isso para viver ali, no momento, o palhaço. É descobrir como o palhaço entra em cada lugar e como depois ele sai.
Marina Quinan: É porque, ao mesmo tempo, a gente sempre pedia permissão para a liderança comunitária para se apresentar. A gente visitou muitas aldeias indígenas e sempre é uma questão muito delicada porque eles já sofreram demais com o homem branco. Então, a gente sempre pedia permissão, explicava o que a gente ia fazer e tinha todo esse respeito. Mas, ao mesmo tempo em que tinha toda essa dificuldade de dar conta de tudo isso, era muito mais fácil fazer graça porque as pessoas eram muito mais abertas. Muitas vezes, ninguém nunca tinha visto um palhaço, mas tinha o encantamento do novo, sabe? O desafio, para nós, é trazer de volta para cá. Para esse código do teatro, para o público de São Paulo, que é mais crítico e tem referências diversas...
EOnline: Nessa experiência de lidar com uma outra cultura, que tem um outro código para o humor, o que é encontrado de universal? Existe alguma coisa que a gente pode dizer que faz todo mundo rir independentemente do lugar, da classe social?
Marina Quinan: Existe sim. Existe uma coisa que é universal: as coisas mais simples, mais antigas do palhaço funcionam em todo lugar. E eu acho que tudo que é inocente também é universal. Quando a gente viajou pela primeira vez, nós tínhamos acabado de fazer um curso intensivo com um palhaço chamado Leris Colombaioni - que pertence a uma família muito tradicional italiana que tinha 300 anos de vivência com o circo – e ele trazia umas gags da família – e a gente experimentou, num dos espetáculos, adaptando para o nosso universo e era fulminante. Funcionava em qualquer lugar. Se a pessoa falasse ou não o português, ela se matava de rir do mesmo jeito. Então, existe...
Juliana Balsalobre: Eu acho que, por exemplo, queda, bater a cara na parede ou na árvore funciona sempre... Que são aquelas coisas que você tenta fazer e não consegue. Todas essas coisas que são ‘sem querer’ e acontecem inesperadamente funcionam. Por exemplo, na aldeia de uma etnia que se chama Katukina, do Acre, eles não falavam a língua portuguesa e nós usávamos muitas palavras nas cenas. Mas, quando experimentava uma queda, funcionava e dava muito certo.
EOnline: E nessa questão da língua, como a palavra era usada para o humor já que vocês estavam lidando com vários povos diferentes?
Juliana Balsalobre: A gente teve essa dificuldade especificamente nessa aldeia, que era uma aldeia que não falava português. Alguns homens falavam pouco, mas as crianças e mulheres não falavam mesmo. Então, tinha que trazer a comicidade mais para o corpo. E era maravilhoso trabalhar o humor pelo corpo... Então, a gente ficava perguntando por mímica como que era ‘bunda’ e as crianças falavam e isso também era engraçado para eles. Quando a gente falava uma palavra deles era engraçado porque a gente não sabe falar com aquela sonoridade, então, sempre fica meio cômico.
EOnline: A comicidade da gente estar no lugar do Outro, né?
Juliana Balsalobre: É. Só o fato de a gente ser a gente ali, tentando fazer alguma coisa que para eles era normal, era engraçado. Por exemplo, tentando ajudar a ralar uma mandioca. Mesmo você estando normal, as mulheres já começavam a rir porque você é o elemento estranho ali. Nosso corpo não está adptado àquela experiência. Então, isso já é engraçado. O palhaço não precisava chegar com tudo: com nariz, com roupa, com maquiagem...
Marina Quinan: A gente foi até simplificando bastante. Uma porque fazia muito calor, então, a gente foi tirando a roupa, depois o nariz. A gente usava o nariz de palhaço e tiramos...
Juliana Balsalobre: Porque nesses lugares o nariz de palhaço não significava muita coisa. A gente percebeu isso. Era mais engraçado ter uma cabaça na cabeça, que era um elemento que se usa para colher coisas ou como utensílio doméstico e ter aquilo em um outro lugar do que ter o nariz.
EOnline: E qual o tempo para a comédia nesses lugares?
Juliana Balsalobre: Parece que para você ter o timing certo você também precisa sentir o outro. Se você não sente o outro, não tem como acertar no tempo. Nas comunidades, por exemplo, que a gente fazia na Amazônia, o tempo podia ser muito mais longo do que num grande centro urbano. Na rua, por exemplo, se você não está no tempo certo, a pessoa vai embora. Lá você chega com mais delicadeza, com mais suavidade e com mais tempo...
Marina Quinan: Porque as pessoas lá estão muito mais acostumadas a esperar, né? A dar o tempo das coisas: a dar o tempo de atravessar o rio, dar o tempo da colheita, de cozinhar, de pescar... Tudo é muito esperado.
Juliana Balsalobre: Essa espera não é uma espera. É um viver.
EOnline: E a volta para São Paulo depois de tudo isso?
Marina Quinam: A gente percebeu que a gente tinha que colocar esse material em xeque também. Adoramos essa vivência no norte, mas a gente percebeu que também tem que dialogar aqui, com os parceiros, com os profissionais do nosso ofício. Essa troca também nos alimenta.
EOnline: E as crianças daqui, como estão lidando com esse repertório que é tão distante da realidade delas? Por que a gente tem uma ideia mistificada e estereotipada do que é a floresta, do que é ser índio e do que é a vida lá. Então, como vocês dialogam com essas visões?
Marina Quinan: Como a gente traz muito para a vivência do palhaço, acho que essas visões se encaixam. Trazemos o que é universal.
Juliana Balsalobre: Mas o que eu acho mais importante é trazer outras referências. Nossas referências são sempre do sudeste. Nossa vontade é que as pessoas de lá se reconheçam e mostrar aqui que existem outras possibilidades de vida. A gente está mostrando o rio, está mostrando esse lugar que está passando por situações muito duras – em termos ambientais, a Amazônia está sendo muito sacrificada - e o fato de você falar dessa realidade é muito importante. Mostrar esse modo de vida simples e que é essencial para todo mundo.
A Mostra Las Cabaças pode ser vista no Sesc Pompeia até o dia 21/08, e reúne três espetáculos do repertório e uma contação de história sobre as aventuras dessa travessia ao coração do país.