Postado em 01/08/2001
Por Janaina Rocha e Julio Cesar Caldeira
A cultura tradicional popular é complexa, vasta e cheia de particularidades. Presentes em todos os cantos do país, as manifestações culturais exigem, antes de tudo, uma disponibilidade dos sentidos
O uso constante do conceito de globalização, a partir das duas últimas décadas, e o surgimento da Internet, em meados dos anos 1990, soou os alarmes dos defensores das culturas populares nacionais. Artigos, discursos e livros pregaram a iminente bancarrota das expressões forjadas ao longo de séculos pelas populações. Temia-se o desaparecimento de danças, de festas, de vestimentas e até de linguajares típicos. Da França ao Brasil, passando por outros países da América Latina, intelectuais e políticos mobilizaram-se contra um suposto inimigo, invisível e poderoso: a padronização sob os auspícios das potências econômicas mundiais (leia-se Estados Unidos da América) com o conseqüente enterro do samba nosso de cada dia. Ou a substituição do pão com manteiga por ovos com bacon.
Passado o momento das armas em punho, os números, sempre eles, começaram a desmontar os discursos nacionalistas e o temor da perda de identidades. Em matéria de capa de dois anos atrás, a revista Newsweek, bíblia da economia americana, anotava um fato aterrorizador (para eles): proporcionalmente, nunca a música americana havia vendido tão pouco mundo afora. A despeito de toda a máquina cultural - como cinema, tvs a cabo, gravadoras -, artistas como Madonna ou Michael Jackson, entre outros emblemas da cultura pop internacional, vinham sendo batidos na boca do caixa por nomes desconhecidos além de suas fronteiras nacionais. Ou seja, no Brasil Paul McCartney não seria páreo jamais para Chitãozinho e Xororó. Tudo bem, o continente brasileiro é riquíssimo em ritmos musicais. Mas - registrava a mesma reportagem da Newsweek - a Coréia do Sul, que não possui nenhuma expressão reconhecida nessa área, continua consumindo avidamente seus ídolos populares, em detrimento das ricas produções das Spice Girls ou do U2.
A pergunta seguinte então seria: mudou o mundo ou mudamos nós? Qualquer observador que queira olhar para o Brasil das duas últimas décadas, seja através dos programas de televisão ou das páginas dos jornais, irá perceber coisas inusitadas. Está ocorrendo uma reafirmação de aspectos da cultura popular a partir de uma sintonia com a indústria cultural. Até os anos 1970, o Carnaval continuava sendo a festa popular mais famosa do país. É verdade que hoje em dia centenas de cidades construíram seus sambódromos. Mas no Nordeste brasileiro são as quadrilhas - antes conhecidas apenas como festas juninas - que mobilizam o maior número de pessoas, com suas coreografias e danças. Até dez anos atrás, poucos habitantes do eixo Rio-São Paulo sabiam da existência do Carnaval extemporâneo de Parintins (AM). No entanto, os ritmos indígenas produzidos naquela região se tornaram hits nas rádios francesas. E o número de festas populares, Brasil afora, recebe cada vez mais um número superior de participantes.
Permanência cultural
Tudo isso significa que o receio de uma dizimação da cultura popular pela globalização não fazia muito sentido? Ao que se verifica, sim. "Colocar as coisas em termos de guerra com a globalização ou de resistência da cultura popular não é a melhor forma de analisar a questão", começa explicando a professora e pesquisadora Marlyse Meyer, autora de livros como Maria Padilha e toda a sua quadrilha, sobre religiões afro-brasileiras, e Do Almanak aos Almanaques. "Há uma dinâmica que percorre certas manifestações culturais. Essas manifestações vão se modificando conforme o acaso e a vida dos chamados brincantes (pessoas que fazem e participam das festas)." A professora analisa que essa dinâmica revela uma permanência cultural que sempre coube e caberá dentro do modo como certas camadas da população brasileira vivem e sentem. "Além de tudo há de se observar essa permanência também na fé dessas pessoas. As manifestações culturais estão muito ligadas à questão religiosa." Marlyse enxerga que, apesar das migrações e de suas influências, essa "dinâmica da permanência" perpassa e continua nos costumes. "Eu vi muito uma dança em Vicente de Carvalho (região do Guarujá - litoral de São Paulo), onde há um forte núcleo de imigrantes nordestinos, que mostra o quanto esses elementos e lembranças acompanham o povo", exemplifica. "Eles têm forte a tradição do guerreiro, uma dança da época do Natal. Tradição que eles levaram para as praias do Guarujá. Não está tão 'pura', faltam alguns elementos, mas aquilo continua, é o modo de ser daquela população. Sempre existiu uma coexistência de tempos no Brasil". A professora não ignora o impacto da globalização nas individualidades de um país, mas não acredita em verdades absolutas dentro dessa questão. "É claro que a globalização no Brasil provocou fenômenos terríveis de esquecimento", pondera. "Mas, por outro lado, eu li um artigo sobre agricultura que mostrava que essa história de que as pessoas estavam, em massa, deixando o campo não era totalmente verdade. O texto dizia que ainda havia muita gente no campo." Para Marlyse, a analogia serve para mostrar que certas representações estão "incluídas na vida cultural da população brasileira".
A reação à tecnologia
No Brasil, as expressões populares ganham densidade econômica, obtêm público recorde e alimentam os lançamentos da indústria cultural. Ninguém até então ousaria afirmar que manifestações como o Sírio de Nazaré, em Belém, ou a Procissão de Ouro Preto, seriam responsáveis pela atração de milhares de turistas brasileiros e estrangeiros. Ou que as festas de Parintins fossem tema de documentários no Canal Plus da França. "A televisão é uma forma de informar as pessoas da existência dessas manifestações", defende a professora Marlyse. "Os puristas, muito de boa vontade, ficam indignados com a influência da televisão. Agora, isso é uma realidade. Você vê a felicidade dos participantes por terem tido a chance de um dia passar na televisão. E por que não?", questiona. "Por que fazer deles defensores de uma pureza? Eles também estão no mundo de hoje e a televisão é muito importante para eles." Quanto aos tão discutidos aspectos negativos dessa "interferência" da mídia nas manifestações populares, a professora acredita que não se pode enxergar a questão de forma maniqueísta. "Por um lado, é difundido, por outro, tem gente que quer ver", analisa. "Tem havido ultimamente programas belíssimos na televisão. Eu mesma sei que a TC Educação, da Bahia, está fazendo uma coleta geral dessas manifestações culturais de todo o estado, e fui entrevistada para a parte da festa de cristãos e mouros no extremo sul da Bahia. Mesmo quem viu pela televisão ficou encantado. Isso aumenta a informação." Meyer relata que teve a oportunidade de assistir a várias festas, mas considera a possibilidade de que possam ser vistas pela televisão. "Isso está sendo veiculado para todo o Brasil." Marlyse vê nisso uma nova reavaliação da cultura popular brasileira. "E a TV tem sido um meio de divulgação de tudo isso", conclui.
A TV e a Viola de Inezita Barroso
Apesar de essa reavaliação da cultura popular estar acontecendo durante os primeiros momentos de um novo século, o interesse da TV não é exatamente tão recente. Principalmente para aqueles que não consideram vinte anos pouca coisa. Essa é idade do programa Viola Minha Viola, exibido pela TV Cultura, em São Paulo, e em rede para todo o Brasil. À frente do programa uma grande figura da cultura popular, Inezita Barroso.
Comemorando 47 anos de carreira, Inezita, antes da TV, já participava de programas de rádio e atuava em cinema, além de já nos ter presenteado com 78 discos gravados, verdadeiros documentos do mundo da viola e da vida do homem do campo. Quando criança, Inezita sempre viajava para as fazendas da família, esparramadas pelo interior de São Paulo. "Eu me lembro de um som muito bonito e diferente", recorda-se. "Eu ia para o interior, nas férias, e era o céu." Ela conta que sempre teve muito interesse por música e poesia - "desde os cinco anos de idade eu decorava coisas pra declamar" -, de forma que o contato com a cultura caipira significou um grande impacto. "Puxa, eu pensei, isso vai além do que ouço em São Paulo." Inezita aprendeu as músicas caipiras que ajudou a perpetuar nessas idas à fazenda. "Eu tomava nota de tudo." Na ocasião, a menina Inezita impressionou-se com a festa para São Gonçalo de Amarante, protetor dos violeiros. "Era um santo diferente pra mim. Imagine o santo e a viola juntos!", delicia-se. No seu apartamento, na Barra Funda, Inezita tem algumas réplicas do santinho que, segundo a tradição portuguesa, de 1551, passava as noites dançando com as prostitutas para que não pecassem. "Eu reparava que a crença caipira era muito forte e que as festas e a música caipira eram muito religiosas. Depois eu descobri que vem dos índios, dos jesuítas. Fui voltando na história, porque a pesquisa exige isso. Aí que fui dando mais valor ainda. Me perguntava: 'Será que eles fazem isso só por causa da igreja?'. Mas não. Aquilo estava na família deles, as gerações anteriores eram daquele jeito. Passei a admirar mais ainda", relata.
Além de artista intrinsecamente ligada ao universo da cultura popular caipira, Inezita também enveredou pelo caminho da pesquisa, fascinada pela teia de secularidade e complexidade das manifestações a que assistiu Brasil afora. Inezita deu-se conta, ao ver, ouvir e viver a cultura brasileira, do quanto ela é viva, diversa e ancestral. "Foi através dos livros de Mário de Andrade que eu tive a noção, por exemplo, do quão difícil é a nomeação das 'culturas populares'", explica. Conhecida, principalmente, por ser a grande dama da música caipira, Inezita recebeu, de bom grado, o conhecimento da cultura do universo rural do Sudeste. De fato, é sabedora dos causos, da moda e da viola, mas, como ela afirma, isso não aquietou, pois é impossível não adentrar na cultura brasileira. "A cada dia, uma descoberta, uma surpresa. Fui comparando e encontrando ligações, parentescos culturais", analisa Inezita.
Outro seduzido pela "volumétrica e ancestral" cultura popular brasileira, como costuma dizer, é o músico Paulo Dias, que também comanda a Associação Cachuera!, uma entidade paulista de documentação da cultura tradicional afro-brasileira. Desde 1992, freqüenta assiduamente festas populares, nas quais sempre leva um gravador. "A maneira de fazer um tambor de alfaia, por exemplo, que é feito da palmeira, é uma arte muito antiga. Tem uma herança ancestral", conta ele. "Existe uma tradição afro-brasileira de batuques, entre eles, o jongo, que está dentro do universo sertanejo, por assim dizer", retoma. "O jongo é caipira e a temática é rural. Mesmo se hoje ele está cada vez mais nas periferias urbanas - porque a roça veio para a periferia -, as imagens que utiliza são as de carro-de-boi, da lida com gado".
Janaina Rocha e Julio Cesar Caldeira
são jornalistas
Ritmos e festas Pequeno glossário da cultura popular tradicional ![]() Folia de Reis - A folia recebe o nome da comunidade, do santo ou do chefe (capitão) que é o dono do terno. Os foliões representam a figura dos reis Magos e só andam à noite, orientados pela estrela-guia. Vozes de guia - São os cantadores que fazem a primeira voz da dupla, aquela que puxa o canto. Vozes de resposta - Feita pelos cantadores que respondem ao canto dos guias. Lundu - Dança de origem africana, trazida pelos escravos bantos da região de Angola e do Congo. É difícil precisar a sua origem no Brasil. As primeiras referências, de 1780, descrevem-na como licenciosa. Hoje ela tem um sentido mais amplo, com diferentes interpretações pelo país, e outros gestos. Na folia, é quase um sapateado, feito um a um, numa roda. Jongo - O jongo é uma tradição cultural que os bantos trouxeram da África para o Brasil e que, na época da escravidão, servia como forma de fazer, por meio da música, crônica do cotidiano, críticas aos brancos e até planos de fugas. O jongo, assim como outras manifestações afro-brasileiras, tem muitas camadas de sentido, misturando a religiosidade com a magia. O jongo, por exemplo, mostra-se tão diverso quanto o samba. Umbigada - A umbigada é da mesma família do jongo. Segundo a análise do antropólogo Edison Carneiro, ela pertence à classe das danças herdeiras do batuque congo-angolense. Basicamente, o que a caracteriza é a menção que faz ao universo lúdico amoroso dos bantos-africanos. Congada - São cortejos com dança e música que nasceram dos negros, os Reis do Congo (soberanos eleitos entre os escravos) que acompanhavam as confrarias religiosas nas Minas Gerais do século 18. Era um espaço de sociabilidade entre brancos, africanos e seus descendentes. Fontes de informação para o vocabulário: |
A grande dama Inezita Barroso, interessada no universo caipira desde criança A "odisséia" de Inezita Barroso rumo ao interior do país começou dentro de um jipe, acompanhada de um cunhado e de um amigo. "Dona do seu nariz", Inezita saiu de São Paulo para o Rio Grande do Norte em 1956. No carro, era ela quem dirigia, pois os dois moços não sabiam guiar. Segundo ela, foi uma época em que recolheu rico material musical. "As coisas mais lindas do meu repertório", confessa. |