Postado em 31/05/2016
Expressões da cultura popular, o lambe-lambe e a fotopintura capturam instantâneos do modo de vida dos rincões do país
Um ensaio ou uma fotografia isolada são mais do que o registro de um momento, ao revelarem aspectos sociais, econômicos e culturais da cena eternizada pelo fotógrafo, independentemente do suporte empregado. Para além da captura instantânea, é possível interpretar a imagem segundo as lentes das ciências sociais e da antropologia, por exemplo, ou dar foco à estrutura narrativa ali contida.
A designação fotografia popular, segundo o historiador e pesquisador Titus Riedl, é representada por algumas vertentes, entre elas o lambe-lambe –“um tipo de fotografia instantânea, em que o laboratório de revelação era integrado à própria câmera” –, a fotografia de monóculos – “a qual inseria pequenos slides em suportes plásticos”– e a fotopintura, uma expressão que se desenvolve entre as polaridades da fotografia e da pintura. “Em termos gerais, essa fotografia presente em romarias e feiras em todo o Brasil abrange também gêneros específicos, como a fotografia votiva, quando as imagens eram depositadas em casas de milagre e expressavam o agradecimento de cura ou algum pedido ao divino. Nesse contexto, encontravam-se retratos de enfermos ou feridos e até de defuntos deitados em cama ou num caixão, geralmente entornados por familiares”, explica Riedl, morador do Cariri, no Ceará, e colecionador de fotopinturas, retratos fáceis de encontrar nas paredes das casas do interior do Nordeste, guardando aspectos familiares e de memória que resistem ao tempo.
O contexto de um retrato
Esse tipo de registro também ecoa os bastidores da cena, expressando a força do personagem retratado, do contexto em que se insere e do resultado apresentado, trazendo à luz as preferências que conduzem o trabalho do fotógrafo.
A narrativa construída por meio das imagens pode ser fiel à realidade ou tender ao ficcional pela interferência do autor. Para Riedl, a fotografia popular é pouco intencional. “O papel do fotógrafo como autor ou criador da imagem geralmente é uma incógnita, ou seja, simplesmente não sabemos da intencionalidade, pois não conhecemos muitos autores, que no decorrer do tempo ficaram anônimos”, contextualiza o pesquisador. Ele também salienta o fato de que esse tipo de registro é ordenado a partir de alguns estereótipos. “A serenidade do semblante, uma pose de afirmação social, roupas (geralmente acrescidas pelos fotopintores ou emprestadas pelos fotógrafos) que sugerem a obtenção de plena cidadania, enfim, todos aspectos que fornecem certa autoridade ao retratado. O desejo do cliente, nesses casos, até pode vigorar mais do que a ideia autoral do fotógrafo ou do fotopintor”, observa.
Do analógico ao digital
A tecnologia foi responsável pela disseminação da fotografia e por mudanças radicais no modo de obter, armazenar e reproduzir imagens. A palavra “fotografia” vem do grego phosgraphein e corresponde a “desenhar com luz e contraste”. Com o passar do tempo e o advento das novas tecnologias, o registro que tinha como suporte o filme fotográfico deu lugar ao processo majoritariamente digital, da captação à reprodução da imagem, que deixou de precisar do quarto escuro para ganhar forma.
A diretora do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura em Fortaleza (CE), Valéria Laena, menciona que nesse recorte de entendimento, o retrato popular é uma expressão que “naturalmente entra em extinção com a passagem da fotografia analógica para a digital; principalmente nos últimos anos, quando o telefone celular e a câmera fotográfica estão cada vez mais presentes na vida das pessoas”. Para ela, a chamada febre do selfie populariza a fotografia, “mas com novos códigos, num outro e maior alcance, tornando-se popular em outro viés, já que se fotografar e ser fotografado hoje não exige momentos especiais, o fazemos no cotidiano e sem cerimônia”.
Reconstrução da história de uma modalidade fotográfica comum no interior do país norteia exposição Retrato Popular, que pode ser vista até 31 de julho
A exposição Retrato Popular pode ser vista no Sesc Belenzinho até 31 de julho, com a proposta de mostrar ao público uma reconstrução da história dessa modalidade fotográfica, que, no Brasil, possui aspectos característicos e particulares.
“Digo que na proposta da exposição o recorte trata de três técnicas ou gêneros que tiveram significativo alcance para uma extensa camada da população brasileira, sobretudo a nordestina: o lambe-lambe, o monóculo e o retrato pintado (ou fotopintura)”, diz Valeria Laena, uma das curadoras da exposição em conjunto com os pesquisadores Rosely Nakagawa e Titus Riedl. “Elas tiveram o poder de democratizar o retrato num período em que o ato de fotografar e ser fotografado era caro e raro para boa parte da população.”
Retrato Popular tem como base obras do acervo do Memorial da Cultura Cearense – Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, de Fortaleza (CE) – e de colecionadores particulares. O visitante encontrará coleções de monóculos, ex-votos fotográficos, câmeras de lambe-lambe, os tradicionais cavalinhos e charretes para fotografias de crianças e moldes e retratos pintados por Mestre Julio, um dos maiores nomes da fotopintura brasileira.
“A fotografia popularizou o retrato nas camadas sociais que emergiram na Revolução Industrial e se retrataram para se perpetuar como a nova classe ascendente”, completa Rosely Nakagawa.
Também fazem parte da programação oficinas, encontros e workshops com a participação dos curadores e fotógrafos com obras expostas na mostra. A entrada é gratuita. Confira detalhes das atividades complementares no portal Sesc São Paulo.