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Entrevista
Sérgio Cabral

Compositor, jornalista, escritor e conhecido boa-praça, o carioca Sérgio Cabral tem enriquecido o universo da música popular brasileira há mais de quatro décadas. Através de textos esclarecedores, vem revelando aos leitores, de forma leve e bem informada, os escaninhos dessa arte tão admirada no país. Formado na antiga escola de intelectuais, que misturava prática e teoria, Cabral, que já foi vereador na ex-capital da República, conhece o assunto sobre o qual escreve de todos os lados do balcão. Com essa experiência, é capaz de analisar letras de samba ou de falar sobre movimentos musicais com o sabor de quem presenciou de perto tudo o que ocorreu na área nestas passadas décadas repletas de criatividade e reconhecimento internacional. No final de março, o compositor estreou no SESC Pinheiros o projeto Boteco do Cabral, que deve se repetir, até o final do ano, sempre na última quarta-feira do mês. Em cada oportunidade, um novo tema a ser tratado. Ele iniciou a série tratando de Tom Jobim. A seguir, os principais trechos de sua entrevista exclusiva à Revista E, na qual fala de seu trabalho, da indústria cultural, de suas amizades e, por que não?, de futebol. Nada mais radicalmente brasileiro.

O senhor já pesquisou a vida de grandes músicos brasileiros como Tom Jobim, Pixinguinha, Nelson Sargento. Fale sobre seu trabalho, ou seja, perscrutar e escrever sobre música popular brasileira.

Isso é o que eu mais gosto de fazer. Se pudesse só viveria disso: levantar a história. Sobre esse assunto já tenho vários livros escritos, várias biografias. E esse é um trabalho que eu realmente gosto de fazer, porque tenho a sensação de que estou sendo útil à sociedade, ao país, sinto que estou mostrando coisas que são cada vez menos exibidas. Porque, para fazer a pesquisa eu tenho de, muitas vezes, fiar-me em depoimentos de pessoas que já morreram. Por isso, o fato de registrar a história da música me deixa muito feliz. O livro que escrevi sobre escolas de samba me dá essa sensação de utilidade. Por quê? Porque apenas eu teria condições de escrevê-lo. Não é que eu seja melhor que outros. É pelo simples fato de eu ter convivido com os pioneiros. Eu os entrevistei e eles já morreram. É como se você fosse um professor de História do Brasil, fizesse uma palestra e dissesse: "Está aqui Dom João 6º, quem não me deixa mentir". Eu fiz isso. Fiz várias palestras com Ismael Silva, Cartola, Donga. Fazer esse tipo de coisa me deixa muito feliz.

O senhor concorda com a opinião de que o Carnaval já não é tão autêntico como antes?

O Carnaval e as escolas de samba são coisas absolutamente dinâmicas. O Carnaval de 1920 não foi igual ao de 1900, que por sua vez não foi igual ao de 1850. Estou usando exemplos de Carnavais bem antigos para mostrar que as coisas se modificam com o tempo. Olavo Bilac se queixava dizendo que o Carnaval antigo era bom. O antigo daquela época. Aliás, o Carnaval é uma grande fonte de saudosismo. As escolas de samba adotaram um caminho que eu não gosto. O lado musical, o lado "samba", está modificado. Os sambas não são tão bons como antigamente, são cantados com muita rapidez e isso prejudica a bateria, perde-se o ritmo. E como a composição das escolas não está mais na base dos moradores da comunidade, mas dos turistas, a dança e a coreografia também foram prejudicadas. Agora, eu reconheço que o lado visual, o lado plástico, foi extremamente valorizado. Reconheço que o espetáculo, hoje, é muito bonito. Inclusive com a vantagem de ser original.

Qual o cunho social que existe no seu trabalho? Como a sociedade se reflete através da música?

Tudo o que eu escrevo mostra esse reflexo. As poucas pessoas que leram meus livros notam que tenho a preocupação de não me fixar apenas no assunto que estou narrando. Na verdade, procuro dizer o que tem por trás da música. Mostro isso nas biografias que escrevi do Pixinguinha, do Ari Barroso, do Tom Jobim, da Elizete Cardoso, do Almirante. Ou seja, em todos os meus livros procuro relatar o lado político, ou o lado do comportamento da população, os preconceitos. No início do século, o preconceito de caráter social e racial era escandaloso. Isso influenciou a própria formação de nossa música, quem fazia samba no início do século era preso. A polícia perseguia, não só quem cantava samba, como também quem exercia qualquer manifestação de origem negra, inclusive religiosa. Os jornais do início do século estão cheios de notícias de blitz da polícia nos centros de macumba.

Como era fazer cultura popular no começo do século?

A abolição da escravatura foi em 1888, ou seja, já no fim do século 19. O preconceito, apesar de cada vez menos evidente, mantém-se até hoje. No início do século era muito difícil ser negro e fazer arte ligada à raça. Em 1919, quando Pixinguinha se apresentou no Cine Palais, um cinema muito elegante na avenida Rio Branco, aqui no Rio, houve críticas. As pessoas queriam saber como se admitia que um lugar tão elegante como aquele apresentasse negros cantando música de negros. E quando Pixinguinha e a turma dos Oito Batutas viajaram para Paris, em 1922, vários jornalistas se ofenderam, com vergonha devido ao fato "daqueles negros" estarem tocando no exterior. Eles diziam: "Essa não é a música do Brasil, a verdadeira música brasileira é a de Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno". Além disso, tocar violão também era complicado. Nos primeiros desfiles de Carnaval na Praça Onze (centro do Rio), quando as escolas chegavam ao final, a polícia as mandava voltar para o subúrbio. Hoje os desfiles são algo glorioso para a história dos negros brasileiros. É uma vitória deles. As escolas são homenageadíssimas pelo governo, pelos turistas etc.

Seria uma volta por cima?

Exato. Embora ainda haja uma incorreção social grave nas escolas de samba.

Explique melhor.

Como a distribuição de renda favorece os brancos, eles têm dinheiro para comprar fantasia e por isso são eles quem desfilam no lugar do negro da comunidade das escolas. Foi uma nova apropriação branca. Uma vez, ao comentar um desfile pela tevê, lancei um apelo para que os brancos devolvessem as escolas de samba aos negros.

O senhor foi amigo de várias personalidades ligadas à música. Como é o seu relacionamento com elas?

Como já estou há 40 anos nisso, tenho relações pessoais com elas. Algumas se tornaram amigas, quase membros da família. Nelson Sargento, que além de compositor é pintor, realizou sua primeira exposição na minha casa. Paulinho da Viola tem esse nome porque eu dei a ele. Aliás, eu e Zé Ketti. Dou parceria a ele nisso.

O senhor chegou a promover esses compositores?

Promover eu não sei se consegui. Fiz muitos shows com eles e escrevi muito sobre eles. Esse é o meu tema, escrevo sobre música desde 1960. Muitos ficaram meus amigos. Eu diria que grande parte do meu círculo de amizades é constituído por gente da música brasileira.

De onde surgiu essa paixão pela música?

Eu não sei. Sou órfão de pai, ele morreu quando eu tinha três anos, e morei na casa dos meus avós. Um tio tinha muitos discos do Orlando Silva, que na época já era um cantor antigo, ou seja, não era um cantor da moda. E eu os ouvia. Uma vez eu estive com Orlando Silva e disse: "Você me meteu nisso, fez-me gostar da música brasileira". Com o tempo, fui tendo outras preferências. Como eu morava em Cavalcanti, subúrbio perto da Portela, envolvi-me desde menino com a escola de samba. Depois fui descobrir o jazz, tentei aprender piano e violão, mas não consegui aprender nenhum dos dois. Quando já era repórter do Jornal do Brasil, colocaram-me para cobrir o Carnaval e assim foi lançado o "Caderno B", o editor, Reinaldo Jardim, disse-me para fazer, às quintas-feiras, uma página sobre música popular brasileira. Modéstia à parte, fiz muito sucesso no jornal. Daí em diante, só passei a fazer isso.

Em que ano foi isso?

Eu comecei a trabalhar no jornal em 1959 e em 1960 passei a cobrir o Carnaval. O jornal, na época, dedicava uma página inteira aos preparativos da festa. Denominava-se o repórter que cobria o Carnaval de cronista carnavalesco. Essa é uma raça extinta. Aliás, existe desprezo cada vez maior pelas coisas brasileiras. Por exemplo, recentemente morreu Stanley Kubrick, realmente um diretor fantástico de cinema, uma figura maravilhosa, e no mesmo dia morreu Antônio Houaiss. O que aconteceu? É só comparar o destaque dado a cada passamento. Houve mais interesse pela morte de Kubrick. O que prova que este ainda é um país colonizado, cujo exercício jornalístico também é colonizado. Para a imprensa nacional, os assuntos brasileiros não interessam muito.

Como o senhor analisa a cobertura cultural na imprensa hoje, principalmente na imprensa escrita?

Ela é parcial e contra a cultura brasileira. Dá-se mais importância ao estrangeiro. Eu não sou xenófobo. Adoro jazz e não quero viver num país fechado, Deus me livre! É por isso que a imprensa em geral, especialmente o rádio (meio de divulgação musical), é tão reticente em resgatar a memória sonora do país? É uma grande falta de brasileirismo. É uma burrice também, pois essa gente que toma conta de rádio e faz as programações é muita primária, ruim, boba. As gravadoras também são culpadas pois têm profissionais que tratam o trabalho como um bar, como uma quitanda, sem imaginação, com medo de perder audiência, com medo de arriscar. Com isso, ouvem rádio americana para fazer igual.

Como o senhor enxerga a cultura popular neste momento, com essa invasão de novos modismos, como a axé music e o pagode?

Isso não me impressiona. Sempre houve deformações e coisas assim. Eu nem tenho muita antipatia pelo É o Tchan, por exemplo, acho uma coisa "brasileira", não é tão desagradável. Há cada vez mais uma separação entre o que é realmente cultura popular e o que é consumo, ou seja, vivemos em uma sociedade de consumo. Existe, digamos, uma decadência da música de consumo no sentido de que uma coisa é cópia da outra. O consumismo não abre oportunidade para uma boa novidade. Oferece apenas a cópia da cópia.

Essa "boa novidade" poderia surgir de onde?

Isso eu não sei. Inclusive, adoraria saber, assim abriria uma gravadora e ficaria milionário. Mas existe, tem muita coisa por aí. A gente vai a um show num bar e encontra um belo compositor mostrando sua música, um belo cantor ou uma bela cantora, um belo músico, um belo instrumentista. Mas são pessoas que encontram dificuldades para gravar, quando conseguem, gravam por selos independentes, aí não têm condições de distribuir. É uma barra. Há uma dificuldade cada vez maior para o jovem compositor da boa música popular brasileira de se lançar e se projetar.

O senhor pode fazer um cânone dos seus compositores preferidos?

É muito difícil. A Isto É me pediu para fazer os 30 do século para uma pesquisa que indicou o Chico Buarque...

O senhor concorda com a decisão?

Eu achei que poderia ser o Chico Buarque. Eu não tenho certeza, mas achei que ele tem condições de ser o melhor. Como outros também têm. Tom Jobim, Pixinguinha, Ari Barroso, Villa-Lobos, sem dúvida, também poderiam ser. Mas fazer a lista dos 30 foi um sacrifício. Lembro-me de que quando cheguei ao 25o, percebi que tinha mais 30.

O que o contato com esses compositores legou ao senhor, além, evidentemente, do amor pela música?

O que eu lamento é não ter sido mais profissional nessas amizades. Por exemplo, havia um cantor muito importante e revolucionário na nossa música, o Mário Reis, que estourou na década de 1920, foi até o final da década de 1930, mas abandonou tudo, pois era rico e bem nascido. Depois, voltou ao cenário algumas vezes, mas sem se firmar. A verdade é que não queria mais ser cantor. Quando eu o conheci, ele não cantava mais e, imagine, morava no Copacabana Palace. Uma pessoa para morar no Copa tinha de ser grã-fina. Ele almoçava no Jockey Club e passava o resto do dia no Country Club, que é o lugar dos cariocas riquíssimos. Mas era uma figura admirável, eu adorava ele e as suas histórias também. Havia um porém nisso tudo: ele não dava entrevista, detestava ser fotografado. Acho que até por um pouco de vaidade, ele achava que tinha envelhecido, que estava feio. Chamava-o de Greta Garbo. Enfim, apesar de não dar entrevistas formais, ele conversava muito comigo e contava várias histórias. Eu não podia perder essa ocasião. Um dia, eu estava em Nova York e comprei um aparelho de gravar conversas telefônicas que na época não existia no Brasil. Comprei só por causa do Mário Reis. Você acredita que não tive coragem de usar o tal aparelho? Achei que seria uma traição. Hoje eu me arrependo, é claro que deveria ter gravado. Uma vez, escrevi uma reportagem sobre ele, baseado nas informações que ele tinha dado em mesas de bar, telefonemas e tal. Rendeu uma página inteira de jornal. Dias depois, eu encontrei um amigo em comum que me contou que o Mário estava impressionado comigo, ou melhor, com a minha memória. Tinha aprovado e a matéria estava séria. E melhor, ele não ficou zangado. Isso aconteceu com Ismael Silva, Pixinguinha.

A minissérie Chiquinha Gonzaga está causando algum furor...

Chiquinha Gonzaga, se fosse americana, já teria sido filme, show na Broadway, teria sido uma porção de coisas. A lembrança do nome dela é uma coisa fundamental, é necessária.

E o futebol? O senhor gosta muito desse esporte?

Futebol é outra coisa. Eu gosto do Vasco. Eu nem sei se gosto de futebol, sei que gosto do Vasco. Para mim, jogo do Vasco é um acontecimento importantíssimo. Se vai passar na televisão, eu não assumo nenhum compromisso. Eu tenho uma verdadeira paixão pelo Vasco.

Essa paixão é hereditária?

Não. Foi uma bobagem. Esse tio que tinha os discos do Orlando Silva uma vez me perguntou qual time eu queria ser e me deu uma relação. Eu gostei dos nomes América e Botafogo. Fiquei em dúvida. Certo dia, ele me falou que o Vasco tinha vencido o Botafogo por 2 a 0. Aí eu disse: "Ah! Então eu sou Vasco". Ou seja, foi pela razão mais boba. Depois eu conheci a história do time: o primeiro clube a aceitar negros, enfrentou o racismo dos adversários.

A trajetória do jogador não se assemelha um pouco com a do músico popular?

Parece um pouco sim. Há grandes solistas, há grandes pianistas e há grandes carregadores de piano.

Como surgiu a iniciativa do Boteco do Cabral, "aberto" recentemente no SESC Pinheiros?

Surgiu do Helton Altman, amigo paulista que me convidou. Falou com o SESC e a coisa surtiu efeito. A expressão "Boteco do Cabral" eu já uso há algum tempo, esteve até na televisão. Quando fui candidato a vereador eu usei o "Boteco do Cabral" durante a minha campanha eleitoral: uma maneira meio malandra de ganhar votos. Eu levava meus amigos artistas para cantarem de graça, cobrava ingresso e ganhava dinheiro. Deve ter dado certo porque fui eleito três vezes.