Sesc SP

postado em 20/05/2013

Práticas transformadoras

Destaque 728x410 cultura2

      


Cultura e ação cultural investiga as relações teóricas que existem entre cultura e educação, ação e democratização culturais

 

Palavras como cultura, educação e cidadania nunca foram usadas tão reiteradamente no Brasil como nos dias de hoje, fazendo-nos acreditar que chegou de fato a hora de o país ficar cara a cara com a prontidão crítica que tais termos repercutem e mudar de vez sua forma de lidar com as ações que eles exigem. Entretanto, convém desconfiarmos de toda e qualquer palavra que, de tempos em tempos, é usada como mera muleta retórica, constituindo uma fórmula linguística cristalizada que rapidamente perde sua vivacidade e migra para os discursos oficiais, única e exclusivamente preocupados em disseminar o senso comum e conservar as mesmas estruturas sob o anúncio de uma aparente revolução.

A palavra cultura, por exemplo, se examinada em seu “estado de dicionário”, como queria o poeta Carlos Drummond de Andrade, priva das mais nobres intenções. Para o Aurélio, cultura é tanto “o complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”, como também implica a noção de “desenvolvimento de um grupo social, uma nação etc., que é fruto do esforço coletivo pelo aprimoramento desses valores”, equivalendo às ideias de civilização e de progresso.

Uma vez que temos conhecimento do caráter ornamental que o saber e a cultura assumem no Brasil – traço este cuja origem ibérica foi identificada por um pensador do porte de Gilberto Freyre – e da dissonância que ocasionam o saber e a cultura de tipo moderno postos em um contexto de ideias fora do lugar – como estudou Roberto Schwarz –, devemos saudar um livro como Cultura e ação cultural: uma contribuição a sua história e conceitos, escrito por Newton Cunha e publicado pelas Edições Sesc São Paulo em 2010, no qual não somente são investigadas as relações teóricas entre cultura e educação, como são também são discutidos o histórico e práticas efetivas de ação e democratização culturais.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira, batizada de “Acepções do termo cultura”, Newton Cunha – um especialista no assunto de quem as Edições Sesc São Paulo, em parceria com a editora Perspectiva, publicaram em 2003 o Dicionário Sesc: a linguagem da cultura – apresenta ao leitor o longo itinerário percorrido pelo conceito, da antiguidade clássica aos dias de hoje. Salta aos olhos nesta parte o invejável poder de síntese do autor, que consegue examinar em não mais do que dez páginas o complexo campo lexical por onde transita a noção de cultura, segundo as concepções de pensadores do porte de Edward Burnett Tylor, Pierre Bourdieu, Max Weber, Francis Bacon, T. S. Eliot, Herbert Marcuse e Friedrich Nietzsche, dentre outros.

A segunda parte trata mais detalhadamente do conceito de ação cultural (termo muito caro à atuação do Sesc São Paulo, por exemplo, e em torno do qual, inclusive, a entidade está sempre procurando produzir inúmeras modalidades de reflexão), dividindo-se em cinco espessos capítulos. Em “Pressupostos político-sociais: o Estado, a sociedade civil e a cidadania”, Newton Cunha, amparado por exemplos históricos, investiga a natureza das relações sociais de produção cultural e sua evolução até os dias de hoje, seja por intermédio das ações públicas e estatais, seja por meio das iniciativas de mecenas e de organizações privadas. No capítulo seguinte – “Ação cultural no âmbito da sociedade civil” –, comparam-se três modelos cosmopolitas de ação cultural: o da Escandinávia e dos países germânicos, o da França e do Brasil – com destaque especial para a atuação do Sesc no Estado de São Paulo. “Interpretações culturais” é o nome do terceiro capítulo e nele o autor inventaria os valores que devem pautar uma verdadeira ação cultural: a diminuição das desigualdades, o estímulo aos novos talentos, a análise das ideologias e visões de mundo, a experimentação e o despertar de novos interesses, a formação de público, o contato com os registros históricos. No capítulo seguinte – “Política cultural” – o autor volta a usar o método comparativo, destacando, agora, os modelos de gestão cultural soviético, francês e brasileiro. Cumpre notar aqui o acurado poder de articulação do autor que faz conviverem informações muito complexas de modo absolutamente natural. O último capítulo – “Direitos culturais e multiculturalismo” – trata de um assunto controvertido: o direito às diferenças pleiteado como questão de honra nos dias atuais sem que se dê conta de suas imbricações com uma sinuosa plataforma neoliberal.

Do ponto de vista metodológico, o primeiro grande mérito do livro de Newton Cunha é o de entrelaçar organicamente muitos saberes do campo da filosofia, da sociologia e da história das ideias, tornando tal relação altamente estimulante para o leitor. A segunda qualidade é de ordem metodológica: a fim de atender aos mais variados níveis de leitura, o autor transita alternadamente pelo terreno das definições e sínteses, das digressões etimológicas e das problematizações ou críticas sem soar em momento algum hermético ou pedante.

Sob a ótica do universo discursivo proposto pelo autor, a cultura tem um valor substantivo. As ações culturais em essência projetam o desejo de uma outra sociedade, mais justa, mais feliz, mais humana, levando o público a refletir sobre a imagem real das sociedades injustas, infelizes, desumanas. Nasce desse projeto a visão de que cultura, educação e cidadania devem constituir práticas transformadoras, tecidas em âmbito formal ou não. Quando aliadas, elas criam uma rica gama de possibilidades para a formação do indivíduo e para seu efetivo convívio social, tornando possível a ideia de um mundo melhor.

O trabalho de Newton Cunha procura sempre que possível esclarecer os vínculos históricos das iniciativas sobre as quais ele se detém, como, por exemplo, a ação das escolas populares e universidades livres; a construção da cidadania e as elaborações e reivindicações de direitos e políticas culturais; as proposições de democratização cultural e, ainda, as formas atuais de entendimento do multiculturalismo, atreladas às noções de diversidade, respeito e reconhecimento.

Outro enfoque que merece destaque é o da democratização cultural, que conduz à necessidade de apoio e estímulo às mais diferentes iniciativas e ao combate dos obstáculos de desigualdade social e econômica para acesso às práticas culturais. Cultura e ação cultural: uma contribuição a sua história e conceitos propõe um verdadeiro entendimento do que é democracia cultural, termo que remete ao direito e ao exercício pleno da cidadania.

O livro de Newton Cunha goza ainda de uma última qualidade: os leitores mais atentos são convidados a compreender os mecanismos que presidem os gostos e os hábitos das pessoas, plasmados na relação familiar, nos âmbitos do ensino formal e não formal e nas práticas socioculturais das comunidades em que elas habitam. Assim, tais leitores podem identificar as potencialidades e os limites do panorama cultural que as cidades vêm costumeiramente oferecendo a seus cidadãos, muitas vezes somente sob a forma de produtos e de serviços. O que é pouco para a cultura e as verdadeiras ações culturais.

 

Veja também:

:: 15 livros sobre cultura e ação cultural | Do confronto de ideias podem surgir os insights responsáveis por tirar os projetos da gaveta e nessa linha de pensamento alguns títulos ajudam a dar o primeiro passo

Produtos relacionados