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postado em 09/03/2016

Sedução da palavra

Ilustração de Gustave Doré para <em>Chapeuzinho vermelho</em>, de Charles Perrault
Ilustração de Gustave Doré para Chapeuzinho vermelho, de Charles Perrault

      


Com referências que vão da antiguidade aos dias atuais, Contação de histórias mostra por que a arte de narrar tem se transformado em uma poderosa técnica de comunicação e formação de leitores

Por Affonso Romano de Sant’anna*

 

Você está prestes a iniciar a leitura de uma coletânea de ensaios sobre contação de histórias. Não adianta procurar por essa expressão nos dicionários. Ela é inventada, criada pela realidade e pela fantasia de milhares de pessoas em todo o mundo; é novíssima e velhíssima.

Em diversos textos deste panorama sobre contação de histórias, há referências à antiguidade e à eficiência da arte de narrar, constituindo-se como uma vigorosa amostra do que vem sendo feito nessa área.

O fato é que tudo é narrativa. A religião, a ciência, a tecnologia, os jornais e a própria história mundial e do nosso país são uma narrativa.

A religião ilustra a função da narrativa em nossas vidas: pessoas se entregam ao martirológio ou se explodem acreditando que vão ao encontro das mil e uma virgens.

A ciência, por sua vez, pretende ser científica e às vezes o é; no entanto, também é uma narrativa. Vejam a própria história da ciência: ela é uma sucessão de narrativas contraditórias. A ciência se modifica, se contradiz. Ela tem como justificativa o fato de que evolui e descobre coisas novas. A ciência grega, por exemplo, é diversa da ciência medieval. Ptolomeu é um capítulo encerrado e Copérnico, uma abertura. Einstein refuta Newton. E Stephen Hawking e outros refutam Einstein. O que será a ciência amanhã? A atual, com Heisenberg e Niels Bohr, narra as incertezas que encontram eco na pós-modernidade. Portanto, na melhor das hipóteses, a ciência é uma narrativa em progresso. Assistimos hoje a grandes avanços tecnológicos, e eu talvez espantasse alguns se dissesse que a tecnologia também é uma narrativa. Vejam, por exemplo, a trajetória da fotografia nos últimos anos.

Na universidade, começaram a falar há alguns anos do “fim das grandes narrativas”. Era uma forma de se referir a uma concepção da história como se esta fosse um romance que seguiria com teses, antíteses e sínteses. Chegou-se a falar até do “fim da história”. O filósofo francês Francis Fukuyama, que lançou essa confusa ideia, se desculpou depois dizendo que a história continuava. Ou seja, ele se enganara. As histórias são nosso modo de ser, e elas podem ser simples e complexas.

Antes, acreditava-se que a história era uma flecha que avançava em linha reta. Nossa geração aprendeu a duras penas que a história não caminha como uma flecha, ou seja, não é uma sucessão linear. A história é uma narrativa de estrutura complexa, ela vai e volta; e cada cultura tem um conceito de história, o que vale tanto para os gregos quanto para os índios brasileiros. A história é uma narrativa dentro da qual nos agitamos. Como toda narrativa, ela se dá no tempo, e o tempo se dá em uma trágica dimensão humana.

Eu me lembro de ter lido um livro sobre o uso da narração de histórias na terapia de casais. Os clientes montavam histórias conjuntamente e iam externando, assim, seus problemas. Então, dizia-se algo curioso: que foi Sherazade quem inventou a terapia das histórias. Enquanto ela fabulava, não só as mulheres eram poupadas de morrer, mas as histórias eram criadas, repetidas, estendidas, imortalizadas.

Outro dia me surpreendi com uma notícia que saiu no jornal The New York Times, de 13 de dezembro de 2014: “Estudos desvendam o poder de contar histórias nos negócios”. A matéria começava por fazer uma aproximação interessante: o efeito do storytelling pode ter relação com a oxitocina, ou “hormônio do amor”.

O fato é que ninguém resiste quando dizem ao nosso lado “era uma vez”. A literatura é a forma mais evidente de narrativa ficcional. O autor sabe que está narrando, inventando, tentando seduzir seu leitor. O escritor é um ilusionista que chega a crer na ilusão que cria. Por isso, escolho um exemplo que tem duplo significado, pois trata tanto da sedução da palavra escrita quanto da sedução da palavra oral, tema desta obra.

O livro do escritor Dai Sijie, Balzac e a costureirinha chinesa, que também virou filme, trata primeiramente do fascínio que causa entre os jovens chineses oprimidos por Mao Tsé-Tung a leitura de alguns clássicos ocidentais, como Balzac. A obra é cheia de significados. Um deles é como a literatura pode mudar a vida das pessoas. Mas há algo mais nessa narrativa: a contação de histórias. No filme, que é uma narrativa em si, abre-se outra narrativa, mostrando como a força da palavra sobrepõe-se à força da imagem. Uma personagem narra que assistiu a um filme e conta o que viu, e sua narração é mais interesssante que o filme. Uma personagem chega a dizer que prefere o filme contado ao filme em si. Ou seja, a narrativa oral mexe com outras áreas da mente, vai além da imagem. Não é à toa que a contação de histórias tem se transformado em uma poderosa técnica de comunicação e formação de leitores.

Como se sabe, minha vida profissional tem muito a ver com a contação de histórias. Estive à frente da Biblioteca Nacional entre 1990 e 1996 e, nesse período, implantamos o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler) em mais de trezentos municípios. A contação era uma das estratégias do Proler e, por isso, ainda hoje se ouvem histórias do projeto da Amazônia ao Rio Grande do Sul.

Tudo é história, tudo é narrativa. Já que este livro está em suas mãos, leia-o cuidadosamente. Sua leitura faz parte desta história.

 


*Affonso Romano de Sant’anna é escritor, poeta, cronista e professor. Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.
 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

 

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