Sesc SP

postado em 22/09/2015

Exercício fundamental

Imagem a partir da tela de Victor Meirelles. Moema, 1866. óleo sobre tela 129 x 190cm. Coleção Masp
Imagem a partir da tela de Victor Meirelles. Moema, 1866. óleo sobre tela 129 x 190cm. Coleção Masp

      


Sobre a arte brasileira: da pré-história aos anos 1960 nos lembra de que nunca podemos nos esquecer do passado, que é sempre necessário voltar atrás para que possamos nos projetar à frente

Por Giancarlo Hannud*

 

John Ruskin, um dos mais importantes críticos de arte da era vitoriana, assim como pensador social, artista diletante e filantropo, escreveu, no final do século XIX, em seu livro St. Mark’s Rest: The History of Venice, que “Grandes nações escrevem suas autobiografias sobre três manuscritos – o livro dos seus feitos, o livro de suas palavras, e o livro de sua arte. Nenhum desses livros pode ser entendido ao menos que leiamos os outros dois; mas dos três, o único relativamente confiável é o último”¹. Poderíamos dizer que o Brasil conta com considerável número de títulos discutindo os feitos realizados sobre essa quartelada ao sul do Equador, como, para citar somente alguns, o História do Brasil de Bóris Fausto, a série História do Brasil Nação organizada por Lilia Moritz Schwarcz, e, se voltarmos um pouco no tempo, as histórias de Rocha Pombo e Pedro Calmon. Quanto à história de suas letras e palavras, contamos com grandes contribuições, como a História concisa da literatura brasileira de Alfredo Bosi ou o fundamental Formação da literatura brasileira de Antonio Candido. Boa parte desses livros pode ser hoje encontrada sem grandes dificuldades pelo leitor interessado. No entanto, quando chegamos ao campo dos estudos sobre os feitos artísticos do, ou ocorridos no, Brasil, o panorama que se apresenta é um pouco diferente.

Não que livros sobre essas manifestações não existam, é desde Manuel de Porto Alegre, com sua Memória sobre a escola antiga de pintura fluminense de 1841, que ensaios com essa temática vêm sendo grafados, constituindo bons exemplos o História da arte brasileira de Pietro Maria Bardi, e o fundamental História geral da arte no Brasil, coordenado por Walter Zanini e publicado pelo Instituto Walter Moreira Salles e a Fundação Djalma Guimarães, em 1983. No entanto a dificuldade de obter essas publicações é grande.  O último, sem dúvida a mais importante contribuição para esses estudos, mesmo que hoje um pouco desatualizado, encontra-se esgotado, e quando encontrado seu valor é na maior parte das vezes proibitivo. O que esses dados deixam claro é que o curioso que enveredar pelo caminho da história da arte no Brasil não encontrará edições atualizadas que tratem do assunto – evidentemente fundamental para a compreensão de uma autobiografia brasileira – de forma clara, objetiva e panorâmica.  Os estudos que hoje encontramos são em sua maior parte muito específicos, especialistas e dirigidos a um público que já goza de certa familiaridade com o tema. É, portanto, dentro desse contexto que devemos entender e considerar a publicação do livro Sobre a arte brasileira: da pré-história aos anos 1960, organizado por Fabiana Werneck Barcinski. Nesse sentido, nenhuma crítica deve se sobrepor a suma importância dessa iniciativa, que disponibiliza ao leitor um conjunto de textos de diferentes autores que trata de forma bastante ampla temas dos mais variados relacionados à história da arte no Brasil, que vão desde a arte rupestre e cerâmica ameríndia até manifestações da arte produzida nesse território até meados dos anos 1960.

Ao dirigirmos nossas atenções para o livro, algumas perguntas acabam por se plasmar durante uma leitura mais crítica. O que ele é exatamente? Quais são seus objetivos? Qual o seu público? Trata-se de uma publicação acadêmica ou uma introdução dirigida a um público leigo? Nenhuma dessas indagações diminui o enorme prazer que é enveredar pelos caminhos oferecidos pelas narrativas construídas em torno dos objetos artísticos produzidos no Brasil, e poderiam ter sido facilmente esclarecidas numa nota redigida pela organizadora, Fabiana Werneck Barcinski, onde a seleção dos autores e os partidos tomados por ela na organização da obra estariam precisados.  É evidente que toda história escrita se caracterizará essencialmente por suas omissões e nunca por suas inclusões, no entanto a tomada de um partido é importante e deve ser defendida, ou ao menos explicitada, por quem a toma. Em relação a isso deve se dizer que o belo ensaio sobre a arte pré-histórica do Brasil, de Anne Marie Pessis e Gabriela Martin, estaria bem acompanhado com um sobre as raízes e antecedentes portugueses da arte brasileira. Afinal a relação entre a arte produzida em Portugal influenciou direta e cabalmente a produção brasileira, bem mais do que a produção pré-histórica ou ameríndia. Como lucidamente disse Antonio Candido a respeito da literatura realizada no Brasil, ela foi durante muito tempo mero ‘galho secundário’ da lusitana. A questão que aqui se coloca e que se encontra identificada de maneira particularmente clara no texto "Para uma história (social) da arte brasileira" de Francisco Alambert é:  sobre o que estamos falando? Qual é o sujeito (Brasil) que define o objeto (arte)?

Os textos incluídos na presente publicação são da mais alta qualidade, encomendados a especialistas em suas respectivas áreas de atuação. Eles se dividem basicamente em dois registros. De um lado temos textos de grande fluência e fácil compreensão, dirigidos ao principiante, como são os de Luciano Migliaccio a respeito da segunda metade do século XIX – texto de leitura deliciosa que tem a habilidade de capturar nossa imaginação e trazer à vida o ambiente artístico e os indivíduos que então o compunham –, de Ricardo Gomes Lima, sobre arte popular, de Valéria Piccoli sobre artistas viajantes – impressionante pelo número de informações nele incluído de forma bastante clara – e Elaine Dias sobre a primeira metade do século XIX. De outro temos ensaios mais acadêmicos, dirigidos, imagino eu, a um público mais familiarizado com o campo da história da arte, como os de Paula Braga sobre os anos 1960, que concentra-se sobre o histórico das exposições no Brasil do período, Glaucia Kruse Villas Bôas sobre concretismo, Ana Paula Cavalcanti Simioni sobre modernismo, e o de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira sobre o barroco luso-brasileiro.  Esse último, que trata de uma produção que se caracteriza por suas tantas diferenças, adaptações e modulações, é claramente dirigido a um público especialista, com grande número de termos específicos, mesmo que profundamente envolvente. O elemento vivo que caracteriza as construções religiosas coloniais brasileiras – com sua coreografia da fé, múltiplas formas artísticas e outros elementos que constituem a experiência estética global que esse gênero de construção encapsula – é nele por vezes eclipsado pela análise aprofundada dos elementos formais que o constituem. Mesmo assim, ou talvez exatamente por isso, faz-se leitura obrigatória para qualquer interessado na produção do período.

Me parece que é importante que entendamos a arte, como escreveu Ricardo Gomes Lima num dos mais belos ensaios da coleção, “como a expressão simbólica do homem, como uma condição inerente ao ser humano, como uma manifestação reveladora de significados que têm que ver com estética, mas também com os valores de indivíduos e grupos que a produzem.”² Para tanto, uma avaliação viva desses objetos, que dê conta das realizações na maior parte das vezes individuais de uma dada sociedade e tempo, se faz necessária. Se realizações pictóricas individuais podem ser explicadas em termos históricos e sociais, como muitos dos textos intentam fazer e que me parece ter sido um direcionamento conceitual da presente publicação, é uma pergunta aberta, e que deve continuar assim. O que permanece, a meu ver, é que a história da arte que resta a ser escrita no Brasil é uma que tenha em sua origem não teorias, ismos e histórias de exposições que plasmam energias sociais, mas sim nas narrativas dos objetos produzidos por indivíduos inseridos nas peculiaridades de seu tempo e espaço.

Nesse sentido, o texto de Paula Braga nos fornece uma boa citação. Trata-se de um texto de Hélio Oiticica, quando ele comenta a famosa asserção de Mario Pedrosa, de que o Brasil é um país condenado ao moderno. Ele nos apresenta a ideia de que essa é uma noção muito importante, posto que “que só há possibilidade de ir para frente, em outras palavras, de experimentar... que não há razão para voltar atrás no Brasil, ou fazer uma reavaliação dos valores da história da arte etc. e tal, não há razão para ninguém voltar atrás.”³ A minha rejeição dessa asserção de Oiticica advêm da crença de que nunca podemos nos esquecer do passado, que é sempre necessário voltar atrás para que possamos nos projetar à frente. Esse é o esforço que deve ser feito. É precisamente isso que esse livro faz: olhar para trás. Exercício fundamental. É por esses e outros motivos que a leitura dessa edição se faz rito obrigatório para qualquer interessado na arte do Brasil.
 

¹RUSKIN, John. St. Mark’s Rest: The History of Venice. Nova York: John Wiley & Sons, 1890. Tradução do autor. p. III.
²BARCINSKI, Fabiana Werneck (org.). Sobre a arte brasileira: da Pré-história aos anos 1960. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes: Edições Sesc São Paulo, 2014. p. 328
³Ibid. p. 314


*Giancarlo Hannud é historiador e integrou a equipe curatorial de importantes projetos, como a 28ª Bienal de São Paulo e da representação nacional brasileira na 53° Esposizione Internazionale d'Arte, Biennale di Venezia. Desde 2010, Hannud é curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

 

Veja também:

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