Sesc SP

postado em 15/09/2015

Brincando de fazer cenografia com Pamela Howard

O espaço cênico de <em>The Greek Passion</em>. Desenho: Pamela Howard
O espaço cênico de The Greek Passion. Desenho: Pamela Howard

      


Ao relacionar espaço, texto, pesquisa, composição, direção, atores e espectadores, Pamela Howard procura resposta à pergunta que dá título ao seu livro: O que é cenografia?

Por Fausto Viana*

 

A veterana cenógrafa inglesa Pamela Howard finalmente tem sua obra O que é cenografia? (Edições Sesc São Paulo, 2015, 280 páginas) lançada em língua portuguesa. Publicada no Reino Unido em 2009, já chega ao Brasil no formato da segunda edição inglesa, revista e ampliada pela própria autora.

É um daqueles momentos em que se deve dizer: já não era sem tempo. O trabalho de Howard vem ajudar a ampliar um campo de pesquisa que lentamente se desenvolve no Brasil. A cenografia traz uma série de relações com outras áreas que a compõem, complementando ou se opondo a ela: a iluminação, os figurinos, a sonoplastia, os espaços cênicos e, naturalmente, a atuação dos atores. Diferentes profissionais da cenografia como Cyro Del Nero, J.C.Serroni e Gianni Ratto buscaram e muitos ainda buscam refletir sobre o fazer cenográfico.

Howard tem em seu portfólio mais de duzentas e cinquenta produções realizadas no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Europa em geral, desde 1960. Não se pode dizer que tenha feito apenas a cenografia destes espetáculos. Em muitos, foi uma cenógrafa competente, brilhante e segura da sua área de atuação. Em tantos outros, extrapolou a cenografia combinando seu trabalho com a direção ou fez apenas direção dos espetáculos. Pamela se autodescreve como uma cenógrafa atuante, diretora, curadora, professora e escritora.

O que é cenografia? evidencia acima de tudo a pesquisadora Pamela Howard, que ela combina ao longo da publicação com a professora, a cenógrafa e a diretora.

Ela colhe a impressão de diversos cenógrafos do mundo sobre o que é cenografia, para revelar a sua apenas nas últimas páginas da obra. Sua visão sobre cenografia contemporânea é ampla, acolhedora e muito clara. Ela aborda temas que são essenciais para o fazer teatral do século XXI: define o conceito de site specific, de espaços encontrados, de espaços tradicionais em seus diversos formatos, usando espetáculos seus para exemplificar essas diferentes abordagens, tendo ela feito a cenografia ou não. Tudo isso certamente vai ajudar o jovem pesquisador e estudante de teatro e das artes em geral a compreender um pouco melhor as temáticas abordadas na cena atual.       

Ela descreve o que é uma maquete, nada surpreendente em um livro dedicado à cenografia. Mas expande o alcance desse objeto ao explicar como os atores, diretores, técnicos e demais participantes do espetáculo podem se beneficiar dela. Ou então sua inutilidade nos casos em que é tão pequena que vai acabar parando na mesa de algum burocrata como objeto de decoração, fugindo de sua função primordial. Ponto para Howard, que não deixa de mencionar os truques do métier de maneira franca e direta.

Essa objetividade destaca um aspecto muito curioso que permeia o livro todo e que merece atenção: as citações de Edward Gordon Craig (1872-1966), o cenógrafo inglês, filho da grande atriz Ellen Terry (1847-1928) e discípulo do marido dela, Henry Irving (1838-1905).

Craig disparava em Da arte do teatro (1912) ideias como essa: “Quando tiver uma dificuldade, não hesite, escute a opinião de um homem de teatro - nem que seja um alfaiate - ao invés de dar atenção ao que diga um amador. (...) O mais insignificante maquinista sabe mais sobre nossa arte do que esses amadores”. O enfant terrible do teatro inglês da virada do século XIX para o XX é citado diversas vezes por Howard - parece ser uma de suas fontes teóricas preferidas. Não são poucas as demais referências: Adolphe Appia (cenografia), Joseph Svoboda (espaço cênico), Erich Mendelsohn (arquitetura), Iánnis Xenákis (música) e muitas outras do mundo do teatro: Bertolt Brecht, Caspar Neher, Tadeuz Kantor, Ariane Mnouchkine e Peter Brook.

Mais do que citar todas estas figuras, como se fosse uma prova de erudição, Howard vai relacionando diferentes pontos de vista com sua própria produção teatral. O mais citado é mesmo Craig, que ela menciona sem talvez se dar conta do quão parecidos eles são no que se refere ao pensamento cenográfico. O leitor vai descobrir essas semelhanças ao longo do trabalho, mas já fica uma indicação: o olhar comum para a valorização dos homens e das mulheres de teatro que efetivamente põem as mãos à massa, que fazem do teatro sua atividade cotidiana. Ambos também relegam a cenografia ao segundo plano quando há no espaço cênico um ator que domina o seu ofício.

Pamela Howard descreve o tempo todo o seu prazer com o processo criativo, seja na mistura de tintas e nas colagens ou na elaboração de um “museu vivo” de imagens em uma parede, onde os atores podem fazer inúmeras consultas durante a produção. Sua satisfação se revela também ao fazer pesquisa histórica, buscar referências, encontrar instrumentos que sirvam para representar plasticamente a obra e embasar o processo criativo da equipe do espetáculo. É bem verdade que a maior parte dos processos descritos por ela pressupõe uma criação anterior ao trabalho com a equipe, que ao chegar para os ensaios já encontra o projeto do cenário e do figurino prontos e daí partem para a criação de suas personagens. O método, bastante tradicional, foge do processo de criação coletiva, em que o cenógrafo está inserido nos ensaios e vai ajudando a compor a obra aos poucos, junto com a equipe. Caspar Neher trabalhou desta maneira com Bertolt Brecht, que ela admira. A criação coletiva também está na obra do Teatro da Vertigem, que ela viu na Colômbia e descreve com uma palavra simples: “perigo”.    

O que é cenografia? é acima de tudo um relato delicioso da vida dessa veterana de espírito jovem, de cabelos vermelhos, sorriso franco e aberto. Que ainda lembra a menina que um dia viu seu tio desenhar e percebeu que os olhos dela enxergavam coisas que as pessoas convencionais não viam. E foi ao teatro e viu que essa forma de enxergar era o princípio de criação do artista que idealiza o espetáculo. É uma lição de vida e ao mesmo tempo serve de inspiração e conforto para todos aqueles que vão ao teatro, ao cinema, aos balés, às artes em geral e sonham o mesmo sonho possível desta inspirada inglesa.

 


*Fausto Viana é professor de cenografia e indumentária da Escola de Artes, Ciências e Humanidades e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

 

Produtos relacionados