Sesc SP

postado em 03/07/2015

Referência conceitual

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Teoria cultural e cultura popular constitui uma obra indispensável a qualquer pessoa interessada na interpretação das marcas e dos significados das práticas sociais

Por Newton Cunha*

 

Os estudos culturais que se desenvolveram no século XX, sobretudo no meio acadêmico, tiveram quase sempre como tema principal a cultura popular, aqui compreendida a cultura de massa, ou, em outros termos, a que se difundiu popularmente, e de modo predominante nas sociedades modernas, com o advento das tecnologias de reprodução (ou, no dizer de Walter Benjamin, na Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, na “era de sua reprodutibiidade técnica”). O novo livro publicado pelas Edições Sesc São Paulo, Teoria cultural e cultura popular: uma introdução, de John Storey, professor da Faculty of Arts,  Design e Media, da Universidade de Sunderland (UK), inclui-se nesse rol ou constelação de textos e de ensaios. Seu propósito foi o de revisitar, expor e comentar diversas teorias formuladas ao longo do século passado por importantes autores europeus e norte-americanos (entre outros, Richard Hoggart, Raymond Williams, a Escola de Frankfurt, Claude Lévi-Strauss, Althusser, Foucault, Lyotard, Frederic Jameson) a fim de reafirmar sua importância capital na vida contemporânea.

É indispensável dizer-se que, como tem sido habitual nesses estudos de natureza mais sociológica ou antropológica (provavelmente por necessidade de limitar ou de se manter no campo de investigação), há dois aspectos que também aqui se encontram excluídos. O primeiro deles é o fato histórico de a cultura popular ser muitíssimo anterior ao advento da industrialização e ter exercido suas influências na vida cotidiana de qualquer comunidade e de qualquer época (aquilo que Herder chamou, já em 1774, no ensaio Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit  - Uma Outra Filosofia da História da Educação Humana -, de Volksgeist, ou seja, o Espírito do Povo, e que permitiu a Goethe descobrir a versão anônima e popular do Doutor Fausto nos teatros mambembes de marionetes, assim como aos irmãos Grimm recolher os contos e fábulas do universo folclórico germânico). O segundo diz respeito às contribuições de certos filósofos, historiadores e críticos de cultura igualmente importantes no correr do século passado, como as de Spengler, Heidegger, Toynbee, Hannah Arendt, Ortega y Gasset, George Steiner e Octávio Paz, para citarmos alguns.

O percurso de Storey, no entanto, é cronologicamente bem feito e leva em conta, antecipadamente, a necessidade de definição dos conceitos, mesmo por que são vários e, não poucas vezes, deficientes. Nesse terreno prévio das fundamentações, o autor principia pelo termo cultura (“Raymond Williams considera cultura uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa” – p. 13), em seguida tem-se  ideologia (“cinco das muitas maneiras de se compreender ideologia” – p. 15) e, por fim, cultura popular (“Há várias possibilidades de se definir cultura popular... tudo o que pretendo no restante do capítulo é esboçar seis definições de cultura popular” – pp. 19 e 20).

O primeiro autor a ser comentado é o poeta vitoriano Matthew Arnold que, na qualidade de inspetor de educação, chegou a escrever um ensaio sobre “Cultura e anarquia” (Culture and Anarchy, 1869), defendendo uma ideia já muita cara a Cícero: a de que o cultivo do espírito é a única maneira de nos afastarmos da barbárie, do filistinismo e da anarquia. Mais ainda, a de que a cultura não é instrumentação técnica, e sim aperfeiçoamento intelectual e moral (“So the university of Mr. Ezra Cornell... yet seems to rest on a provincial misconception of what culture truly is, and to be calculated to produce miners, or engineers, or architects, not sweetness and light”, Prefácio). É claro, no entanto, que para um conservador da época jamais a cultura popular poderia servir de modelo à ilustração pessoal e, por conseguinte, afirma Storey: “o propósito é essencialmente o mesmo (já apontado anteriormente pelo também poeta e crítico Samuel Colerigde): a mobilização da cultura para policiar as forças rebeldes da sociedade de massa. Segundo Arnold, a história mostra que sociedades sempre foram destruídas por ‘falha moral da maioria doentia’” (p. 52).

Os autores seguintes formam o casal Leavis. Ou seja, o também britânico Frank Raymond Leavis, controvertido crítico literário de formação clássica que muito auxiliou a divulgação das obras de T.S. Eliot, Ezra Pound e James Joyce, embora de seu cânone literário de língua inglesa não fizessem parte Charles Dickens e Thomas Hardy. Seus julgamentos extremamente subjetivos lhe valeram críticas como as de ser “enfadonho, lamuriento, preocupado com ninharias, um pouco desprezível” (tiresome, whining, pettyfogging, little pipsqueak, comentário da poetisa Edith Sitwell). E sua mulher, Queenie Dorothy, igualmente crítica literária, ambos analistas de uma civilização que, para eles, entrara definitivamente em decadência cultural, incluindo as formas e conteúdos da alta cultura.

Na sequência, Storey nos apresenta os debates ocorridos nos Estados Unidos, em finais dos anos 1950, reunidos na antologia Cultura de massa: as artes populares na América (Mass culture: the popular arts in America). Entre os nomes ali presentes, destacam-se as críticas severas de Dwight Macdonald (autor do conhecido Uma Teoria da cultura de massa - A theory of mass culture), Ernest van den Haag e Edward Shils. E retorna à Grã-Bretanha para expor os pressupostos do Culturalismo, termo cunhado por Richard Johnson em 1979 (Three problematics: elements of a theory of working-class culture) para se referir às tendências de esquerda desses estudos aplicados à cultura popular e cujos maiores representantes foram Richard Hoggart e Raymond Williams. Enquanto Frank Leavis lamentava a decadência da cultura em geral, Hoggart via a necessidade de uma resistência, por parte da classe trabalhadora, ao domínio sempre maior da cultura de massa: “Não se trata simplesmente de um poder de resistência passiva, mas de algo que, embora não seja articulado, é positivo. As classes operárias têm uma forte capacidade natural de sobreviver a mudanças, adaptando, no novo, ou assimilando a ele (sic), aquilo que querem, e ignorando o resto... A maior parte dos entretenimentos de massa são... cheios de brilho corrupto, de apelos impróprios e de evasões morais... nada oferecem que consiga atrair o cérebro ou o coração” (pp. 84 e 85). Difícil, entretanto, é saber-se o que restaria de uma pura e exclusiva cultura da classe trabalhadora ao retirarmos os conteúdos e efeitos que sobre ela exerce a cultura de massa (por intermédio do rádio, da televisão, shows de rock ou de espetáculos esportivos, por exemplo). Com Raymond Williams, além do critério tradicional e humanista do termo cultura, v.g., a busca contínua de aperfeiçoamento intelectual e sensitivo, também os aspectos sociais passam a integrar os estudos propostos. Nas palavras de Storey, existindo uma definição social, “a cultura é uma descrição de certo estilo de vida. Para a fundação do culturalismo, essa é a definição crucial, pois introduz três novas maneiras de pensar: primeira, a posição ‘antropológica’, que vê a cultura como uma descrição de certo estilo de vida; segunda, a proposição de que a cultura ‘expressa determinados significados e valores’; terceira, a afirmação de que a obra de análise cultural deveria ser a ‘elucidação dos significados e valores implícitos e explícitos em certo estilo de vida” (p. 97).

A exposição prossegue com as noções de ideologia e de hegemonia, formuladas respectivamente por Althusser e Gramsci, e que estariam inevitavelmente presentes nas vivências e expectativas culturais de classes e grupos sociais. Deriva, em seguida, para a psicanálise, por intermédio de Freud e Lacan, explicando como a ideia de cultura tem por fundamento ou uma necessidade de repressão pulsional (o famoso mal-estar da civilização freudiano, Das Unbehagen), ou uma busca simbólica de plenitude, jamais alcançada pelo sujeito, definido, desde a partida, como lugar da falta (lieu du manque, Lacan).

Também as contribuições do estruturalismo, sobretudo na linguística e na semiótica, são incorporadas ao livro, desde Saussure até Roland Barthes e Michel Foucault, oferecendo um panorama condensado, mas preciso, dessa vertente analítica da realidade atual, densamente povoada de signos. Por fim, e os tempos assim o exigem, Storey faz o inevitável percurso por temas como gênero, raça e pós-modernismos (trata-se de um novo período na cultura ou de etapa tardia e decandente do modernismo?).

Em resumo, Teoria cultural e cultura popular: uma introdução constitui uma obra indispensável à biblioteca particular (esta aqui uma realidade em rápido processo de desaparecimento) de qualquer pessoa interessada na interpretação das marcas e dos significados de nossa vida cultural.

 


*Newton Cunha é escritor, autor de A felicidade imaginada: relações entre os conceitos de trabalho e de lazer (Ed. Brasiliense, 1978), do Dicionário Sesc: a linguagem da cultura (Edições Sesc São Paulo: Perspectiva, 2003) e Cultura e ação cultural (Edições Sesc São Paulo, 2010). 

 

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