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postado em 24/06/2015

Relíquias do leste paulista

Retábulo-mor da Igreja Terceira Carmelita, em Mogi das Cruzes. Foto: Percival Tirapeli
Retábulo-mor da Igreja Terceira Carmelita, em Mogi das Cruzes. Foto: Percival Tirapeli

      


Livro de Percival Tirapeli produz um amplo inventário do patrimônio cultural do Vale do Paraíba, objeto de interesse tanto para o leitor comum quanto para as instituições de patrimônio do país

*Por Ana Luiza Martins

 

Em boa hora é editada a obra Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba: do colonial ao eclético, de autoria do Prof. Dr. Percival Tirapeli. A despeito do recorte geográfico do livro abranger uma das regiões mais estudadas do estado de São Paulo – fato sublinhado pelo próprio autor em sua introdução – o que se tinha até agora era uma bibliografia rica, mas extremamente pulverizada. Compartimentada entre diversas áreas do conhecimento e periodizada por etapas econômicas distintas, não se conhecia reflexão abrangente de seus primórdios até os dias atuais.

É compreensível o tradicional interesse dos estudiosos por essa banda leste paulista. Afinal, trata-se de uma das mais remotas extensões da ocupação colonial, definida a Sudeste do país por longo corredor, formado entre as Serras do Mar e da Mantiqueira, caminho natural e potencializado para os interesses mercantilistas da Coroa Portuguesa. Por ele se embrenharam bandeirantes em busca do ouro ultrapassando a Garganta do Embaú; por ali se desenvolveu o inicial comércio interno do país, com as tropas de muares que partiam de Viamão, no Rio Grande do Sul, trazendo carnes e víveres, atingindo os mercados das “Gerais”, do Rio de Janeiro e mesmo de parte do Nordeste; também nesse curso se espraiou o café, a onda verde que conferiu protagonismo econômico internacional ao Brasil; rota que na segunda metade do XIX recebeu os trilhos de ferro, ligando São Paulo ao Rio de Janeiro, permitindo florescimento comercial de suas cidades e subsequente implantação de uma indústria brasileira; já no século XX, estradas de rodagem modernas incrementaram nosso parque industrial pelo escoamento de produção de ponta, da qual a EMBRAER é exemplo vitorioso.

Não obstante a diversidade econômica e geográfica da área, aquela em razão da sucessão de atividades agrícolas, comerciais e industriais e esta pela coexistência de planícies, vales e morros, cabe ao Vale do Paraíba figurar como uma das regiões que construiu e manteve forte identidade própria. É a gente piraquara (moradora das margens do rio Paraíba do Sul), que se orgulha e cultiva suas tantas tradições, das festas religiosas à reverência aos antepassados nobilitados, à preservação de sua cultura imaterial e às marcas da paisagem urbana e rural que lhe conferem ethos cultural único. 

Tudo isso pode ser apreendido em Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba. Modestamente, o autor anuncia sua abordagem centrada nos aspectos arquitetônicos e urbanísticos. Mas vai muito além, pois ultrapassa a narrativa histórica tecida de forma instigante, trazendo ao final a ordenação das tipologias arquitetônicas e programas de uso de edificações rurais e urbanas. Com isso, produz amplo inventário do patrimônio cultural do Vale do Paraíba paulista, de alto interesse para o leitor comum, para o turismo cultural e para as instituições de patrimônio do país.

Em termos de conteúdo são muitos os aspectos positivos da obra de Tirapeli, cabendo sublinhar alguns. A começar pela maturidade das reflexões, nascidas de sua dissertação de mestrado (1983) e tese de doutorado (1988), ambas na ECA – USP, assim como de seu pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa, percurso sedimentado ao longo de sólida carreira acadêmica, como pesquisador e professor titular do Instituto de Artes da UNESP. Nos últimos anos, a consultoria dedicada ao CONDEPHAAT sobre o patrimônio sacro do Estado levou-o a trabalho de campo, que ampliou in locu e fisicamente sua percepção do urbanismo contemporâneo, a trajetória das edificações religiosas, dos tempos do Padroado à laicização introduzida pela República.

Acrescente-se a singularidade da abrangência temporal da publicação, que se inicia na Colônia e se conclui no século XX, abordagem rara nos trabalhos da região, entrelaçando economia, sociedade e política. Sem dúvida as igrejas mereceram atenção particular, resultado inevitável da especialização do autor na temática, mas, sobrepondo-se a isso, pelo entranhamento secular dessa instituição na vida do país. 

Destaque-se ainda o fato da obra extrapolar a análise das construções magnificadas, vezo da bibliografia tradicional, recuperando ocorrências silenciadas pela história triunfante, introduzindo, por exemplo, as colônias agrícolas imigrantes de meados do XIX. Hoje, a cidade de Quiririm, voltada para o plantio do arroz e cultivando suas origens italianas enriquece o tecido sociocultural do Vale. Também posta em cena no sopé da Mantiqueira, a “Cidade-Paisagem” de Piquete, que abrigou desde 1909 a “Fábrica de Pólvora sem fumaça”, construída por trabalhadores negros e imigrantes.

Como corolário das tantas incursões sobre múltiplos cenários, tem-se o capítulo final, que esmiúça e conclui sobre a icônica Aparecida do Norte, cidade santuário, hoje espaço de conflito visual, que subtraiu a Basílica Velha da paisagem em favor da Basílica Nova, que nubla as visuais da própria cidade.

Cuidado especial mereceu a iconografia que dialoga com o texto, seja pela seleção temporal, que recupera as primeiras tomadas da área, desde os pintores viajantes Thomas Ender (1817), Arnaud J. Pallière (1821) Jean-Baptiste Debret (1826), passando por fotografias qualificadas e desenhos do próprio autor. Nos anexos, destaque para o oportuno glossário, fundamental para a compreensão dos monumentos em sua integralidade. Igualmente facilitador o índice toponímico, que remete o leitor aos lugares de interesse particularizado.

Por fim, sublinhe-se como especial mérito da obra, a inclusão do patrimônio material do Ecletismo, capítulo por longo tempo negado pelos órgãos de patrimônio, restritos tão só aos exemplares de caráter vernacular, que fundamentaram os princípios da arquitetura moderna do país. A inclusão das figurações do Eclético no levantamento de Tirapeli confirma a diversidade e pluralidade de nossa formação cultural, areja e rarefaz nosso olhar, mesmo em terras de arraigadas tradições e de piraquaras zelosos pelo glorioso passado dos esplendores do café.

 


*Ana Luiza Martins é doutora em história social pela USP, conselheira do Condephaat e autora, entre outros, de História do café (Contexto, 2008) e Gabinetes de leituras: cidades, livros e leitores na provícia paulista (Edusp, 2015).
 

Veja também:

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::Percival Tirapeli fala sobre Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba

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