Sesc SP

postado em 10/06/2015

Vivências e práticas culturais na modernidade

Imagem a partir da obra de Sergio Romagnolo. Série Parceiros do Tietê, 1991. Acervo Sesc
Imagem a partir da obra de Sergio Romagnolo. Série Parceiros do Tietê, 1991. Acervo Sesc

      


Em Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade, os organizadores Michèle Lamont e Marcel Fournier reúnem opiniões sobre os limites da cultura na América do Norte

Por Newton Cunha*

 

O título desta coletânea de ensaios, que reúne catorze textos (incluindo-se o prefácio) e dezesseis autores ou coautores oferece um panorama relativamente extenso do pensamento sociológico e de algumas pesquisas empíricas norte-americanas sobre vivências e práticas culturais na modernidade. As diferenças e as fronteiras às quais se referem os autores, todos leftist scholars (ou seja, politicamente de esquerda), dizem respeito a fenômenos e estruturas simbólicas, assim como a comportamentos sociais que não apenas definiriam grupos e pessoas, como contribuiriam para estabelecer distinções ou diferenças entre si, incluindo-se formas ou demonstrações indiretas de poder. Tais diferenças podem vir expressas por meio de atitudes, de práticas cotidianas, de representações (próprias e alheias) e de preferências de gosto estético.

De certa forma, trabalhos de antropologia ou de sociologia do início do século XX já se ocupavam das diferenças de comportamento, de concepções de vida ou de busca de status, como As formas elementares da vida religiosa, de Émile Durkheim (1911) ou Economia e sociedade, de Max Weber (1922), na qual se levam em consideração as formas de linguagem, de educação e de preceitos religiosos na constituição de características grupais e de suas diferenças. No entanto, o tema sobre fronteiras simbólicas (ainda que não tivesse essa mesma denominação) ganhou maior importância a partir da década de 1960, em decorrência de proposições e de ideias formuladas por Pierre Bourdieu, Claude-Lévi Strauss, Norbert Elias, Michel Foucault e ainda Erving Goffmann, que acabaram por influenciar, internacionalmente, os campos da sociologia, da antropologia e da história. Nos Estados Unidos, as obras daqueles autores serviram para orientar estudos sobre aspectos culturais de classes, de gênero e de etnias, esses últimos em função de ali existirem variadas comunidades raciais.

Vejamos, de modo necessariamente restrito, algumas das concepções de certos autores da coletânea.

Para o principal incentivador e orientador intelectual dos pesquisadores ali reunidos, Hebert J. Gans (autor de Cultura popular e alta cultura, também publicado pelas Edições Sesc São Paulo), “a cultura é moldada, acima de tudo, por classe e, portanto, particularmente por desigualdades econômicas e outras a elas relacionadas. É verdade, entre outras coisas, que a cultura também é moldada por gênero, mas... o gênero é, em si, fundamentalmente afetado pela classe” (p. 9). Embora convencido dessa relação umbilical entre classe e modalidade cultural, quer dizer, entre alta cultura e cultura popular, ou ainda (em suas próprias palavras) cultura como experiência intelectual-artística e cultura na qualidade de divertimento, Gans admite que “As diferenças entre esses tipos de cultura também complicam a relação entre cultura e classe, e este livro fornece considerável evidência de que essa relação dificilmente é direta” (p. 12).

Realmente, os ensaios que se seguem reafirmam as diferenças e a existência de fronteiras, mas tanto as causas quanto as consequências de tais fenômenos nem sempre são as mesmas, o que dificulta generalizações e determinadas conclusões de caráter conceitual. Um pequeno exemplo: dizem os organizadores (Michèle Lamont e Marcel Fournier) que “A cultura é não só um código ou um modo de comunicação: é também uma forma de dominação, uma ideologia a serviço das classes dominantes” (p. 24). Com isso, presume-se que a cultura não possa desempenhar o papel reverso de combate político, de desenvolvimento intelectual, de aprimoramento da sensibilidade, nem que a ideologia marxista (em qualquer de seus matizes) possa superar aquela característica, pois exerceria a mesma finalidade de dominação que qualquer outra (como de fato exerceu no leste europeu até a queda do muro de Berlim). Mais uma vez, no entanto, os autores buscam minimizar assertivas tão contundentes, e assim se expressam: “Como ocorre com todas as categorizações, a distinção entre conhecimento, comunicação e dominação é esquemática demais: distingue entre abordagens que, de fato, são bastante indistintas e, muitas vezes, facilmente transgredidas... Portanto, na teoria sociológica, as fronteiras são como limites na vida diária: são arbitrárias, mesmo se tivermos relutantes em reconhecê-las como tal. Uma vez que isso seja reconhecido, nosso desafio é deslocar e violar tais fronteiras, e desenvolver um conceito de cultura multidimensional” (p. 25).

Paul DiMaggio, professor em Princenton, tem se dedicado a estudar a influência de fatores não econômicos, como o capital cultural, na formação de grupos de prestígio e de instituições socioculturais que garantam tal reconhecimento. Seu trabalho na coletânea procura mostrar como, sobretudo no correr da primeira metade do século XX, a relação entre arte e sociedade norte-americana foi mudada para estabelecer e consolidar uma área reservada de alta cultura (museus, música erudita, óperas, dança), na qual atuam as trusts, forma particular de patronato sem fins lucrativos.

Embora o tema da alta cultura também esteja presente no ensaio de Diana Crane, ela o utiliza não como resultado de uma pesquisa de campo, mas de maneira teórica, buscando demonstrar que já estaria completamente obsoleta a oposição entre culturas alta e popular, já que “Hoje, a cultura é pluralista: em todas as formas culturais operam muitos sistemas estéticos diferentes. Consequentemente, a qualidade de determinado objeto cultural só pode ser avaliada dentro de determinado sistema estético – não há padrões universais de qualidade.” Atualmente, haveria sim dois tipos de cultura: a da mídia e a urbana. A primeira é “tipicamente produzida por meio de arranjos entre firmas grandes e pequenas e distribuídas por grandes corporações, com audiências nacionais e internacionais” (p. 92); a segunda, “produzida e distribuída em cenários urbanos para audiências locais”. Neste e em outros casos de critérios puramente sociológicos e mercadológicos, nos quais se desconsideram os juízos intrínsecos de uma obra (domínio de técnicas, qualidades formais, elegância, pertinência, complexidade, profundidade, perenidade etc.), dando-se lugar apenas aos modos de produção, distribuição e venda, enseja-se a ideia de que Sidney Sheldon e Tolstoi possam ser igualmente intercambiáveis, assim como Justin Bieber e Tom Jobim.

Joseph Gusfield trata das metáforas sobre alimentos, bebidas e corpo saudável, discutindo as orientações e as preferências de uma alimentação natural sobre a industrializada, que nos Estados Unidos começaram nos anos 1830, e que, desde os anos 1950, com os movimentos naturistas e de contestação juvenil, também configura um estilo cultural de vida e uma fonte para publicações e produtos comerciais diferenciados e de maior custo.

Nicola Beisel refaz e comenta uma trajetória histórica do puritanismo norte-americano contra a literatura considerada obscena no século XIX. Segundo o autor, “Afirmo aqui que a fronteira moral entre obscenidade e literatura foi construída a partir de ideologias relativas a outras categorias sociais, notadamente as categorias juventude, classe e etnicidade” (p. 151). A obscenidade, inscrita em determinadas obras, mas nem sempre tão evidentes, “envenenariam e corromperiam os córregos da vida”, isto é, todo o corpo social. Nessa condenação entrou, por exemplo, a poesia de Walt Whitman (Esta é a forma fêmea / dos pés à cabeça, exala um halo divino. / Atrai com ardente e irrecusável poder. / Sinto-me sugado por seu respirar / como se não fosse mais / que um simples vapor – Leaves of Grass).

Já David Halle procura demonstrar, por pesquisas empíricas, que a arte abstrata, se foi um dia considerada um apanágio dos estratos mais cultos e vanguardistas da sociedade, inclusive por sua notória dificuldade de “decodificação”, como afirmava o conceituado crítico Clement Greenberg, hoje se sabe que a maioria das residências norte-americanas (salvo em Manhattan, Nova Iorque), não possui qualquer tipo de obra do gênero nem seus proprietários a estimam: “Quando perguntados se gostavam ou não de arte abstrata, os comentários dos residentes seguiam um padrão semelhante – não é particularmente apreciada entre a classe trabalhadora e entre os residentes suburbanos da classe média alta. O que as pessoas têm contra a arte abstrata? Uma objeção comum é que os artistas são charlatães, que não sabem nem desenhar nem pintar” (pp. 193-194).

A dupla Richard Peterson e Albert Simkus, baseada numa pesquisa nacional de 1982, realizada pela National Endowment for the Arts (Pesquisa de Participação Pública nas Artes), reafirma a existência de um gosto mais refinado na área de música em conformidade com ocupações mais elevadas e índices de escolaridade formal. Analisando várias tabelas da enquete, dizem os autores: “Se, como vimos, o gosto musical é um marcador de status ocupacional, também é, provavelmente, um marcador de outros status, como gênero, raça, idade, renda, educação e região. De fato, os dados mostram claramente que a preferência por música country é mais alta entre aqueles com pouca educação formal; é provável que os negros, mais do que os brancos, escolham o jazz; os jovens tendem a preferir o rock, mais do que as pessoas mais velhas” (pag. 227).

O livro, portanto, reúne variadas opiniões, entendimentos e pesquisas que indicam tendências históricas relativamente recentes (as do século passado), e as que se impõem com mais vigor e evidência nos tempos atuais, profundamente modificadas com as novas tecnologias da informação. As mesmas que fazem da experiência simbólica não um ritual e uma eventualidade (como foi a característica da arte até a projeção cinematográfica em grandes salas), mas uma experiência cotidiana, doméstica e banalizada.

 


*Newton Cunha é escritor, autor de A felicidade imaginada: relações entre os conceitos de trabalho e de lazer (Ed. Brasiliense, 1978), do Dicionário Sesc: a linguagem da cultura (Edições Sesc São Paulo: Perspectiva, 2003) e Cultura e ação cultural (Edições Sesc São Paulo, 2010). 

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

:: Vídeo

 

Na resenha do livro 'Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade', organizado por Michèle Lamont e Marcel Fournier, Newton Cunha observa que as variadas opiniões reunidas na obra "indicam tendências históricas relativamente recentes (...), profundamente modificadas com as novas tecnologias da informação. As mesmas que fazem da experiência simbólica não um ritual e uma eventualidade (como foi a característica da arte até a projeção cinematográfica em grandes salas), mas uma experiência cotidiana, doméstica e banalizada." Os autores ali reunidos refletem sobre o quanto a desigualdade instituída pelo conceito de classe tem influência sobre a cultura. ¿ Saiba mais em bit.ly/_diferencas

Posted by Edições Sesc SP on Sexta, 12 de junho de 2015

 

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