Sesc SP

postado em 06/04/2015

Três vidas e mortes de Marina Abramovic

<em>Rhythm 5</em>, Centro Cultural do Estudante, Belgrado, 1974. Foto: Nebojša Cankovic. SKG/NY
Rhythm 5, Centro Cultural do Estudante, Belgrado, 1974. Foto: Nebojša Cankovic. SKG/NY

      


James Westcott desenha a trajetória de Abramovic como uma sucessão de limites superados e de turning points, correspondendo ao hábito de sua biografada de colocar-se em situações extremas

Por Paula Alzugaray *

 

A biografia é um gênero perigoso, na medida em que toma como tarefa enquadrar a vastidão de uma vida em uma narrativa cronológica e linear. Torna-se especialmente questionável quando o biografado é um artista que desafia a própria identidade e a própria integridade, adotando gestos de dissolução, fragmentação ou autoaniquilação. O primeiro grande desafio do escritor James Westcott é, portanto, enfrentar a complexidade da vida de uma artista como Marina Abramovic que, depois de quatro décadas de experimentos com limites físicos e mentais, manifesta em testamento o último desejo de ter seu corpo reproduzido em imitações e sepultado em lugares diferentes do mundo – na América, na Europa e na Ásia.

O autor de Quando Marina Abramovic morrer: uma biografia, obra de 2010 que chega ao Brasil publicada pelas Edições Sesc São Paulo, expõe a dificuldade de sua tarefa já no título e na capa da edição brasileira, que reproduz o texto do último desejo. Com essas escolhas para capa e título, ele declara fidelidade total à sua biografada. No pacto que estabelece ao longo de 336 páginas, Westcott desenha a trajetória de Abramovic como uma sucessão de limites superados e de turning points, correspondendo ao hábito de sua biografada de colocar-se em situações extremas, carregadas de simbologias relacionadas à morte e à ressurreição.

O vínculo entre biógrafo e artista é exposto logo na "Introdução", em que é descrita a circunstância do primeiro encontro. Quando Westcott viu Marina Abramovic pela primeira vez, ela estava “nua no chuveiro, sobre uma plataforma em uma galeria repleta de pessoas”. Era fim de novembro de 2002, o oitavo dia de uma performance intitulada The House With the Ocean View, realizada na galeria Sean Kelly, em Nova York. Como se começasse a contar a história de um grande amor, o autor diz que seus olhos se cruzaram pela primeira vez no dia seguinte, quando ele voltou à galeria. “Ela interrompe o olhar depois de apenas um minuto. Sinto-me abençoado, confuso e faminto por mais conexões”.

Nas quatro primeiras páginas do livro, ele descreve o que viu entre o oitavo e o 12º dia, quando a performance se encerrou. Uma descrição consideravelmente menos detalhada do que aquela que ele mesmo realizou em 2002 para o livro The House With the Ocean View, assumindo a voz da artista em primeira pessoa.

Quase no final de Quando Marina Abramovic morrer, no capítulo “Biógrafo”, descobrimos que Westcott foi convidado a trabalhar com Abramovic após ter escrito um artigo sobre a performance para o The Drama Review. “Após realizar uma rápida leitura astrológica – muito acolhedora e que, fui descobrir mais tarde, ela fazia com a maioria das pessoas num primeiro encontro –, perguntou se eu gostaria de fazer algum trabalho com ela. Um ‘não’ estava fora de cogitação”, escreve o autor que tornou-se, então, uma espécie de “escrivão” da artista. O diário sobre os rituais da vida cotidiana de Abramovic nas três salas da instalação na galeria Sean Kelly pode ser escutado – na voz da própria performer – em headphones à disposição do público na mesma instalação montada na exposição “Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI”, no Sesc Pompeia, em São Paulo, até 10 de maio.

A maneira delicada como o biógrafo se coloca na biografia é um dos pontos altos do livro. Com essa postura metalinguística com que súbita e sutilmente entra na trama como personagem, ele quebra obstáculos que normalmente se interpõem entre autor e personagem, aluno e professor, artista e espectador – correspondendo a um movimento de dissolução de limites que a própria Abramovic tem aprofundado cada vez mais desde a performance The Artist is Present (2010), em que interagiu com 1400 pessoas no MoMA-NY.

Westcott divide seu texto em três partes, que equivalem não a três fases, mas efetivamente a três vidas da artista. A primeira vida acontece na Iugoslávia e vai do nascimento, em 1946, até 1975. Dedicada à origem – antepassados, infância e juventude vividas em Belgrado –, essa primeira parte, muito densa e talvez excessivamente detalhista, ameaça impor ao leitor certa dificuldade de penetração. Mas é preciso atravessar as nuances históricas dos pais da artista, os combatentes socialistas Danica e Vojo Abramovic, que lutaram contra o nazismo para fundar a República Federal do Povo da Iugoslávia, ou a religiosidade da avó e do tio-avô, patriarca da Igreja Ortodoxa Sérvia, a fim de compreender aspectos fundantes da personalidade de Marina e de sua performance.

Interessante relacionar, por exemplo, diversos episódios envolvendo transfusões de sangue (dos pais, quando combatentes na Segunda Guerra), a tendência a sangramentos e hematomas da menina Marina (decorrentes de estresse e palmadas que recebia na mãe, muito severa) e as performances radicais que Abramovic realizou aos 20 e poucos anos, envolvendo inscrições na pele com cortes e escoriações. 

Mais surpreendente é constatar os pequenos “eventos performáticos” que irromperam já na infância, ou mesmo em passagens da vida de parentes antepassados. Como o dia em que a avó Milica saiu de casa e deixou Marina à mesa com um copo d’água, dizendo que não se movesse porque voltaria logo. Voltou 2 horas mais tarde e encontrou Marina exatamente na mesma posição sem ter tocado no copo d’água. A tendência à “performance de longa duração”, que hoje define sua prática, estava anunciada ali.

Em todo seu radicalismo, a performance Thomas Lips, é colocada por Westcott no final da primeira parte da biografia, simbolizando uma primeira morte. Depois de ferir-se, autoflagelar-se, beber uma garrafa de vinho e deitar-se sobre blocos de gelo no formato de um crucifixo, Abramovic estaria pronta para renascer, aos 29 anos (em pleno retorno de Saturno, como não é apontado pelo biógrafo, que possivelmente não se interessa por astrologia).

A segunda vida de Abramovic (1975-1988) é uma aventura relacional – amorosa e profissional – com o artista alemão Frank Uwe Laysiepen, o Ulay. Esse é o momento que ela deixa finalmente a pintura (Abramovic é graduada em pintura acadêmica), decide-se pela performance como expressão única e máxima e troca Belgrado por uma van, passando a viver em trânsito pela Europa com Ulay. Nesses treze anos, realiza dezenas de trabalhos em parceria com Ulay, nos quais desenvolve conceitos primordiais de sua performance: o limite absoluto – físico e mental – e a liberdade e transcendência que advém da restrição.

Talvez a experiência definitiva para o aprimoramento da técnica da performance de longa duração tenha sido a viagem de seis meses no Grande Deserto de Vitória, na Austrália, onde Abramovic e Ulay viveram com aborígenes e “passaram a maior parte do tempo fazendo absolutamente nada”, rodeados pela amplitude vazia do deserto. Foi sem dúvida fundamental para a ativação de uma espiritualidade que viria a se intensificar com o estudo do Budismo e em sua experiência mística brasileira – que não entra na biografia de Westcott.

Da imobilidade e duração do deserto australiano nasceram também o ambicioso projeto de 90 dias da performance Nightsea Crossing (em que passavam oito horas diárias sentados, olhando-se fixamente, e  que acabou por deteriorar a relação) e a travessia da Grande Muralha da China, evento que consagraria o término da parceria Abramovic/Ulay.

The Lovers (1988), a performance épica, grande marco da história do gênero, dá a luz à terceira vida de Abramovic. Aos 42 anos, a artista iniciaria sua terceira longa caminhada, em continuidade ao projeto de “limpeza psíquica”, iniciado na Muralha, formulando um sistema de correspondências entre minérios, cristais e partes do corpo, que culminaria nos Objetos transitórios para uso humano. Nessa série em que a qualidade performática é conferida ao objeto e seu usuário, Abramovic alcança uma síntese entre a body art e a land art e divide com o público a consciência meditativa de seu método.

Embora o biógrafo tenha descrito três vidas e mesmo que o último desejo de Marina Abramovic seja transmutar-se em três corpos a serem sepultados em três continentes, há ainda mais vidas de Marina por biografar. Afinal, em 2016, ela terá só 70 anos.

 


* Paula Alzugaray é crítica de arte, curadora independente, diretora de redação da revista cultural Select e editora da seção semanal de artes visuais da revista IstoÉ
 

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