Teatro fotogênico
Fotografia de palco, de Lenise Pinheiro, capta com muita sensibilidade a vitalidade do teatro brasileiro recente.
A mensagem fotográfica é uma mensagem contínua.
Roland Barthes
A memória do teatro brasileiro vive, no início deste novo século, um momento privilegiado em razão da boa quantidade de livros lançados sobre uma arte que, embora praticada no Ocidente há dois mil e quinhentos anos, nunca mereceu entre nós uma extensa produção bibliográfica. Muitas análises teóricas (normalmente nascidas de dissertações e teses universitárias – meio que passa por uma bem-vinda explosão criativa), biografias de atores e diretores, e entrevistas especialmente editadas vêm conferindo ao mercado editorial voltado ao teatro no Brasil um dinamismo raro, ou mesmo inédito. Mas um gênero ainda pouco explorado é o livro que reúne fotografias de teatro, não com o pretexto meramente decorativo (boa quantidade de títulos sobre teatro costuma ser ilustrada por fotos e materiais iconográficos diversos) e, sim, com o intuito de explorar especialmente o potencial estético da mensagem fotográfica, tratando de constituir uma espessa documentação visual seja para os arquivos, seja para a pesquisa.
Esta potencialidade estética da imagem fotográfica experimentará o leitor de Fotografia de palco, da fotógrafa Lenise Pinheiro, um caudaloso trabalho que reúne imagens de espetáculos e de ensaios que flagram alguns dos nomes mais representativos do teatro brasileiro das últimas décadas em franca atividade. A coletânea de fotos compõe uma vastíssima galeria da qual fazem parte não somente atrizes veteranas como Fernanda Montenegro e Maria Della Costa como também atores cujas carreiras ainda estão em processo de amadurecimento, como é o caso de João Miguel e Aury Porto. Fruto de vinte e cinco anos da intensa dedicação de Lenise ao meio teatral, o livro impressiona pela quantidade de registros fotográficos apresentados: mais de quinhentas imagens produzidas sobre cerca de trezentos espetáculos.
As fotos estão agrupadas em torno de seis critérios temáticos: camarim, ensaios pessoais, figurinos, cenários, iluminação e cenas. Nos camarins, as imagens captadas por Lenise já revelam uma intenção para além do mero registro documental. Os mais variados veículos de imprensa exibem, diariamente, fotos de artistas flagrados em seus camarins, fornecendo ao público uma ilustração imediata do clima descontraído e informal que costuma ocorrer atrás dos cenários e coxias. Tendo se especializado na fotografia de teatro, Lenise Pinheiro desenvolveu uma capacidade de retratar indivíduos que supera em muito o mero ofício de documentarista ou de repórter. Diante das lentes da fotógrafa, o artista, mesmo no aconchego de seu camarim, já assume uma potente máscara cujo poder de comunicação com a lente é total. Fazendo com que seus “magos” (como ela costuma chamar atores e atrizes) “posem” no ambiente descontraído do camarim, Lenise consegue valorizar determinado detalhe daquela personalidade, levando às últimas consequências a ideia de que todo ator é mesmo um “predador” da tomada fotográfica.
O capítulo seguinte – “Ensaios pessoais” – constitui uma espécie de desdobramento dos registros concebidos nos camarins, já que nele o foco está voltado ao retrato de uma determinada personalidade. Atores, bailarinos, diretores, iluminadores, cenógrafos, escritores e críticos atraem para si o olhar da câmera. Quase em todos os casos, a fotógrafa reduz as personalidades retratadas a um conjunto antinatural em que sobressaem rosto, cabelos, olhos e ombros, carregados de outros sentidos que a câmera de Lenise tira vantagem ao captar.
Nos capítulos posteriores – “Figurinos”, “Cenários”, “Iluminação” – a fotógrafa pretende fazer com que uma grande quantidade dos itens materiais que dão plasticidade real e simbólica ao teatro seja destacada, valorizando o detalhe, o circunstancial e o insólito. A proposta aqui é captar a originalidade de uma determinada peça de roupa ou parte do cenário; de um objeto, adereço ou efeito de iluminação particularmente especial, surpreendidos todos eles em um enquadramento que reconstitua, seja como for, a atmosfera da encenação.
O último capítulo – “Cenas” – é um documento vigoroso que se estende da página 230 à página 444, penúltima antes dos créditos. Aqui, o leitor amante do teatro irá se deleitar com uma profusão de imagens que captam atores e atrizes em pleno jogo de enunciação teatral. O efeito de dramaticidade dessas imagens é obtido pela concentração e pela interiorização do olhar (no caso das fotografias individuais) ou pela bela plasticidade que exala dos corpos dos atores dispostos em duplas ou em pequenos grupos. Neste capítulo, as fotos de Lenise operam uma descentralização em relação aos retratos flagrados anteriormente. Nelas, o rosto do ator expressando sua própria interioridade não importa mais. Os retratos deixam de ser psicológicos, evidenciando rosto e mãos. Agora, eles procuram compreender a enunciação cênica por inteiro, registrando a singular relação de atores e atrizes com os ambientes em que eles se movem noite após noite. As imagens fotográficas de Lenise tratam de encarnar uma bem-vinda ambiguidade: elas registram um ato de criação complexo tanto do ator quanto da própria fotógrafa, cuja lente está habilitada a flagrar o instante que o espectador comum parece não conseguir vislumbrar. Desde seu surgimento, a fotografia, ao mesmo tempo em que documenta a realidade do teatro, também o envolve num golpe de vista, ao congelar ilusoriamente esta arte efêmera em uma imagem.
Fotografia de palco testemunha o laborioso itinerário de uma profissional que angariou, em 25 anos de trabalho, respeito e admiração não só da classe artística, mas também de intelectuais e gestores da cultura – como demonstram os textos publicados ao longo do livro. O diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, afirma estar Lenise ligada à tradição de Fredi Kleemann (1927-1974), fotógrafo que registrou as produções do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e da Companhia Cacilda Becker. Mas, diferentemente de Kleemann, considerado o melhor fotógrafo do teatro brasileiro em sua época, Danilo observa que “Lenise não busca o retrato, mas o instantâneo não elaborado”, produzindo, assim, “verdadeiras reportagens visuais, capazes de captar o imprevisível, o imponderável e o não premeditado”. O jornalista e dramaturgo Otávio Frias Filho lembra que os porteiros e as camareiras dos teatros de São Paulo recebem a fotógrafa “como se ela fosse uma fada que de qualquer modo atravessaria as paredes, esgueirando-se pela plateia para assomar de alguma altura inatingível do cenário, câmera em riste”. Bete Coelho e Ney Latorraca lhe rendem homenagens carregadas de afetividade. “Lenise é o Miguilim do teatro”, afirma a atriz. Já Ney diz que, através das fotos de cena captadas pela fotógrafa (“minha grande amiga”), “temos o maior acervo do teatro brasileiro das últimas décadas”. Daniela Thomas fala da “sombra delicada circulando mansa pelas coxias e plateias dos teatros”. Antunes Filho postula que a foto de teatro, ao contrário da foto social, é desdobrável de muitos e muitos momentos. Por fim, José Celso Martinez Correa dedica à fotógrafa um vertiginoso poema-tributo – "A santeira da pauliceia desvairada mistério gozozo e moda de álbum de família” – no qual declara que Lenise se tornou ela mesma “pessoa e obra, o Totem”.
Nos tempos atuais, em que imagens surgem e somem numa velocidade vertiginosa, poder concentrar o olhar nas fotografias clicadas por Lenise Pinheiro e se aproximar um pouco mais do mistério do teatro é uma dádiva concebida somente por deuses muito especiais – Dioniso e Daguerre, entre eles.