Sesc SP

postado em 17/09/2014

Cultura e identidade social

Exposição <em>Gaúchos e Gaúchos</em>, no Sesc Interlagos. Foto: Evelson de Freitas / Sesc
Exposição Gaúchos e Gaúchos, no Sesc Interlagos. Foto: Evelson de Freitas / Sesc

      


Em Sociologia das práticas culturais, o sociólogo francês Philippe Coulangeon discute as diferenças sociais implícitas nos hábitos culturais

Por Welington Andrade*


Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a orientação dos hábitos culturais representa um objeto de interesse não somente para os profissionais da cultura como também para os estudiosos da sociologia, uma vez que as práticas culturais dos habitantes das grandes cidades ao redor do mundo constituem um relevante fator na análise das relações sociais e das desigualdades nelas existentes. A estratificação social das práticas culturais, por sua vez, alimenta um debate recorrente sobre a pertinência das políticas públicas desenvolvidas no âmbito da cultura, que se desdobra em duas questões essenciais: quais são os fundamentos teóricos que devem embasar tais políticas e a que tipo de desigualdade elas podem responder?

No mundo contemporâneo, as preferências estéticas, as práticas culturais, a propriedade e o consumo de bens materiais integram os ritos de identificação da vida coletiva, levando a sociologia a estudar a associação entre as características do estilo de vida e as variáveis do status e da origem social. A familiaridade com as artes eruditas e a negação simultânea das artes populares ou da cultura de massa, por exemplo, opõem a classe dominante às classes populares. Segundo a perspectiva que aponta para uma legitimidade cultural das preferências, a escola contribuiria para a reprodução dessa ordem, munindo o “arbitrário cultural” das classes dominantes de uma superioridade acadêmica e intelectual.

Em Sociologia das práticas culturais (Edições Sesc São Paulo), o sociólogo francês Philippe Coulangeon analisa a evolução das práticas culturais, refletindo sobre o impacto da televisão na vida cotidiana, a desvalorização da leitura pelos jovens, a preponderância do ecletismo musical como símbolo da massificação do gosto e a democratização do acesso a equipamentos culturais. Nascido em 1968, Coulangeon trabalha no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) da França, onde desenvolve pesquisas ligadas à sociologia das práticas culturais, à estratificação dos gostos, à cultura de massa e à democratização da cultura. Ao identificar as tendências da evolução contemporânea das práticas que descreve, o autor serve-se de pesquisas sobre o tema, discutindo os resultados nelas encontrados face à interação com fatores específicos como a influência da família na formação do gosto, a qualidade da educação, o nível socioeconômico como marcador de diferenças na escolha das práticas culturais e as efetivas condições para que elas possam reduzir as desigualdades.

Escrito em uma linguagem de fácil compreensão, que, no entanto, nunca perde de vista o rigor das formulações que propõe, o livro é dividido em seis capítulos. O primeiro deles apresenta uma breve síntese das teorias sociológicas que situam as práticas culturais na estrutura social e das grandes orientações das políticas públicas que são normalmente adotadas, fornecendo o fio condutor das análises subsequentes. Os capítulos posteriores tratam das tendências recentes que caracterizam os principais campos de atividades e suas diferenciações sociais: a mais devoradora de tempo (a televisão), a mais legítima (a leitura), a mais diversificada (a audição de música), as que levam a produzir e não somente a consumir (as práticas amadoras) e, por fim, as mais raras e distintas (os passeios culturais).

Em geral, entende-se por práticas culturais o conjunto das atividades de consumo ou de participação ligadas à vida intelectual e artística, que abrangem disposições estéticas e contribuem para a definição de estilos de vida: leitura, visita a equipamentos culturais (teatros, museus, salas de cinema, salas de concertos etc.), utilização de mídias audiovisuais e adoção de práticas culturais amadoras.

A leitura de Sociologia das práticas culturais alerta para um fator preocupante: apesar do forte fomento aos gastos e às práticas culturais, que coincide com a massificação do ensino secundário e com a constante prioridade dada às políticas culturais com o objetivo de democratização, as tendências a longo prazo observadas na distribuição social das práticas e das preferências culturais demonstram um resultado global bastante limitado. Nas últimas décadas, a influência da cultura de massa cresceu de modo significativo, inclusive entre as classes altas e os detentores de diploma superior, devido justamente à progressão das formas de lazer audiovisuais. Por outro lado, a desigualdade de acesso à cultura erudita (tanto às obras quanto aos equipamentos) não retrocedeu, às vezes chegando mesmo a aumentar.

O acurado estudo de Philippe Coulangeon propõe ainda uma outra poderosa reflexão. Diante das desilusões da democratização e da incapacidade relativa dos públicos tradicionais, em um contexto ideológico marcado pela contestação da legitimidade e das finalidades das políticas públicas de cultura, denunciadas por ineficácia, os responsáveis pela gestão dos equipamentos culturais procuram adotar cada vez mais o discurso e os métodos do marketing, quase sempre inadequados no trato com a consciência crítica que os verdadeiros bens culturais desejam despertar.

Destinado aos interessados no tema da sociologia da cultura em geral – mas bastante proveitoso, vale destacar, aos estudiosos e profissionais das áreas da cultura, arte e educação – Sociologia das práticas culturais convida o leitor brasileiro a pensar criticamente sobre algumas questões que nos atingem diretamente. Que mudanças sociais e reorganizações de estilos de vida estão associadas à progressão do ônus com despesas consagradas à cultura e ao lazer? Seria tal processo sinônimo de uma democratização do acesso à cultura? De uma uniformização das práticas e das representações? Ou, sobretudo, de uma fragmentação das identidades, de uma exacerbação das tensões e das desigualdades?

Se o problema das desigualdades culturais se tornou mais complexo, mais difícil de ser interpretado em comparação com o passado, devido à fragmentação das representações e à escalada das práticas ecléticas, isso não significa – lembra a todo momento a obra – que a área cultural deixou de constituir uma questão essencial para o estudo das relações sociais.

 

 


*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, professor e vice-diretor da Faculdade Cásper Líbero e colunista da Revista Cult.

 

 

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