Sesc SP

postado em 29/06/2014

Serroni, o armador de cenários

Serroni

      


Por Luiz Nadal*

 

Traje recomendado: Túnica lisa e máscara
Utensílios de viagem: Agulha e carretel de linha

 

Quando o circo chegava em São José do Rio Preto, José Carlos não precisava sair correndo atrás da caravana. A lona e as arquibancadas subiam na quadra em frente à casa dos Serroni, no bairro da Redentora. O garoto atravessava a General Glicério sem olhar para os lados e ajudava na montagem. “Às vezes emprestava alguma coisa de casa sem a minha mãe saber, para poder ganhar ingresso”. Cada circo tinha a sua demanda. Uma cadeira mais reforçada para o domador de leões. Um saquinho de amendoins para os macacos. Mas agulha e linha eram infalíveis. Os artistas engordavam com o tempo e os figurinos eram sempre os mesmos. Além disso o cenário das peças de drama-teatro era um só. Ninguém achava estranho a atriz de O céu uniu dois corações se derramar em lágrimas com o Monte Olimpo de fundo. “Tinha um repertório de umas quarenta peças”.  Os espetáculos terminavam e os rio-pretenses saíam correndo atrás da caravana. Como se esperasse Ulisses voltar de Troia, José Carlos enrolava o carretel.

 

Enquanto o circo não vem, José Carlos prova túnica e máscara

Não era muito fácil se locomover sem uma caravana. No colegial, teve ajuda da professora de desenho. Dinorath havia se impressionado com uma pintura do aluno e desde então o levava para os salões de arte juvenil. “Eu fiz um negócio todo meio abstrato”, lembra. Nos domingos de manhã, José Carlos colocava seus quadros na praça. “Vendia um ou outro”. Fora o circo, os salões e as exposições de final de semana, só restava enrolar e desenrolar o carretel. Isso até o diretor do grupo de teatro Federação ver as telas do rapaz ao ar livre. Vendramini convidou o artista para pintar o cenário da sua próxima peça, A sagrada família. “Não tinha a menor ideia da técnica, mas me aventurei”. José Carlos pintou cinco telões e zerou o carretel na produção de adereços. Já como ator, sua primeira interpretação não seria tão comentada. Depois de integrar o coro do espetáculo, com túnica e máscara, as vozes em uníssono não lhe dariam sossego – Tragédia! Oh José Carlos, que tragédia!

 

José Carlos corre atrás da caravana

Quando José Carlos entrou no curso de matemática, a família também insistia em coro – Fica, Oh José Carlos, fica! Ele aceitou, mas só por que a faculdade também tinha um grupo de teatro. Trabalhou em mais algumas peças amadoras e decidiu arrumar as trouxas. “Se fosse para aprender mesmo, eu tinha que ir para São Paulo”. Assim que a caravana Cometa saiu da rodoviária, os amigos rio-pretenses saíram correndo atrás. José Carlos entrou no curso de arquitetura da USP em 1971. “Fui já pensando na cenografia”. O coro não abriu o bico, já que a sua primeira aula foi com Flávio Império, o cenógrafo de corres berrantes. Quando José Carlos ainda enrolava carretéis e usava túnica, o professor já havia atuado com seu próprio traje tropical no viaduto do Chá e armado uma cena histórica de saiote e blusa plissada. O império de Flávio era do tamanho de um circo inteiro. Além das aulas na FAU, José Carlos assistiu sua direção em Labirinto: balanço da vida. Também foi ao teatro do Sesi para ver os figurinos e cenários feitos para Chiquinha Gonzaga, Ó abre-alas e A falecida.

 

De como José Carlos entra no picadeiro e ganha um nome artístico

No final dos anos 1970, a FAU desbundava feio. Dispensou os professores com trajes polêmicos e deu um basta nos malabarismos interdisciplinares. “Eu acabei ficando sem ter o Flávio pra me orientar”. Foi a professora de semiótica que ajudou José Carlos no trabalho de conclusão. “Um projeto teórico com implantação de centros onde teriam teatros” – explica. Por coincidência, o marido de Lucrécia Ferrara era chefe no Departamento de Cenografia e Arte da TV Cultura e procurava um assistente para lhe ajudar. O coro, que não suportava aquele discurso acadêmico, foi ao delírio – Ah José Carlos, vá falar com o Ferrara, vá! José Carlos foi e começou a trabalhar na emissora no último ano de faculdade. Depois de três meses como assistente de cenografia, um corte de funcionários colocou o ajudante no meio do picadeiro. “Fui jogado aos leões e tive aprender na marra”. O respeitável público de espectadores não sabia, mas o primeiro teleteatro montado por José Carlos foi Senhorita Júlia, com Antunes Filho olhando atravessado. “Ele nunca tinha me visto lá”. Antunes não era de vestir trajes ousados, mas tinha abertura para todo tipo de experiência no Teatro 2. Aos poucos José Carlos ganhou a confiança das feras. Entre eles, Abujamra, o sátiro de suspensórios. Agora José Carlos Serroni só precisava de um nome artístico. Ou que pelo menos coubesse nos créditos do programa. J.C. Serroni não era um nome fácil de ser entoado pelo coro, mas os convites viriam mesmo assim.

 

Serroni vai viver de teatro e ganha um letreiro luminoso

Serroni foi duramente criticado pelo coro ao recusar o convite de montar Macunaíma, ao lado de Antunes. “Fui assistir a estreia e me arrependi loucamente”. Depois de sete anos, Serroni deixou a TV Cultura para viver de teatro. Naquele mesmo ano, Abujamra lhe convidou para cenografar Morte acidental de um anarquista. O cachê era tão curto quanto a sua assinatura artística. Porém, a Companhia Estável de Repertório tentaria manter uma caravana com elenco fixo. “O teatro enchia todos os dias, com jogo do Brasil ou debaixo de chuva”. Serroni ganhou uma tenda própria e viajou com a trupe durante seis anos. Ainda junto deles é que Xandu Quaresma lhe daria uma trinca de prêmios. E no ano seguinte, Nostradamus, também premiado, renderia um luminoso na lateral da caravana: Serroni, o armador de cenários.

 

Serroni volta e desenrola os carretéis

Depois de expor as três montagens na Quadrienal de Praga, Serroni recebe um novo convite de Antunes Filho ao chegar de viagem. O coro pressionou: Ô, Serroni, agora vê se aceita, Serroni! Após incontáveis turnês pelo mundo, o grupo Macunaíma ocupava o terreno do Sesc Vila Nova. Ali no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), o diretor antropofágico chamou Serroni para montar o seu próprio núcleo de cenografia. Além das aulas, os alunos de Serroni participavam dos processos de montagem. Foram 11 espetáculos com Antunes ao lado. Quando o espetáculo Nelson 2 Rodrigues, em 1989, foi tão aplaudido no exterior quanto Macunaíma, o coro encheu a boca: Tá vendo, Serroni! Tá vendo! Serroni seguiu as recomendações do coro até que o diretor começasse com a série Prêt-à-Porter. Foi então que desmontou a tenda do CPT e decidiu: “Vou fazer alguma coisa pela cenografia, uma coisa mais aberta”. Avistou uma quadra na República, olhou para os lados antes de cruzar a rua Teodoro Baima e ali subiu lona e arquibancadas. Com exposição permanente há 15 anos, o Espaço Cenográfico traz biblioteca, publicações periódicas, fóruns e cursos para aprendizes. Desde que foi e voltou de Troia, o armador de cenários desenrola os carretéis que trouxe da viagem.



Grande feito heroico: Cenografia brasileira: notas de um cenógrafo. Com os carretéis em mãos, o livro foi organizado por J.C. Serroni e publicado em 2012. O autor tece uma história da cenografia brasileira recuperando informações do início do século XX até os dias atuais. E para isso elege como marco a montagem Vestido de noiva, de 1943. Armado em duas partes, a primeira delas oferece uma incursão pela cenografia nacional. Aqui Serroni compartilha suas reflexões ao longo de 35 anos de montagens ao lado de grandes diretores. Mostra o álbum de fotos das Quadrienais de Praga desde 1967 e documenta as mais importantes exposições de cenografia. A segunda parte é dedicada a outros 31 armadores de cenário. Todos eles, assim como Serroni, ganharam letreiros luminosos nas caravanas que andaram pelo país. “O livro tem quatrocentas imagens, mais ou menos, e pelo menos cem delas são ilustrações” – mostra Serroni, do lado de fora da caravana.

Musas: Flávio Império. “Eu sempre ia nas premiações e Flávio Império ganhava melhor cenógrafo adulto. Ah, um dia eu quero ser um Flávio Império! Eu lembro bem que na época ele era minha inspiração”.

Dedicatória aos Deuses: "A biografia artística de J. C. Serroni, de uma certa forma, torna-o um exemplo dos impulsos que, nestas últimas duas décadas, têm feito avançar a cena brasileira. [...] Seus trabalhos são centrados na prevalência do sentido sobre a forma, da profundidade dramática sobre a superfície sensorial. Salvou-se da defasagem técnica através de uma formação de arquiteto e da experiência como cenógrafo de televisão, setores onde a transmissão do conhecimento permanece contínua. (Comentária da crítica e ensaísta Mariangela Alves de Lima, em artigo publicado no catálogo Brazil at the Prague Quadrienal of Theatre Design - 1991) 

 


* Luiz Nadal é colunista na Revista Pessoa e mestrando na UERJ com projeto acerca do gênero perfil.

 

 

 

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