Sesc SP

postado em 29/06/2014

Fabiana, a ampliadora de obras

 fabiana

      


Por Luiz Nadal*

 

Traje recomendado: Capacete de obras e guarda-pó
Utensílios de viagem: Barbie e régua dobrável de madeira

 

Fabiana faz pedacinhos da régua mas consegue ampliar a casa da boneca

Fabiana não se conformava com as medidas da Barbie, desde que o pai lhe dera uma das maquetes da loja para brincar. Ela estendia o papel milimetrado, dispunha os móveis da pequena sala e olhava novamente para a boneca. “Geraldo criava seus móveis em uma escala humana, incorporando a ela o imaginário e o utópico” – explica. Fabiana então pegava a régua para tirar as próprias conclusões. Media Suzy do focinho até a ponta do rabo. Media as ferramentas de jardinagem da mãe, os LPs da irmã Lenora, os vários quadros do pai pela parede. “A Barbie era um gigante”. E a única opção para que a boneca não parecesse um ciclope dentro da caverna, era ampliar o tamanho da casa. Ela então limpava a estante e confeccionava os móveis do seu jeito. “Eu punha os livros como se fosse um sofá”. Só então quando o espaço estivesse em ordem é que começava a brincar. Se nem todos os clientes que entravam na Hobjeto estavam dispostos a comprar os móveis inteligentes de Geraldo, pelo menos a filha já entendia o espírito. “Tinha um trabalho lúdico de imaginar a sua casa” – mesmo que, no final, a régua estivesse em mil pedacinhos.

 

Fabiana deixa as Barbies de lado e vai pintar

Por um tempo Fabiana esqueceu das bonecas. “Eu gostava muito de fazer história em quadrinho”, conta. E quando passou do ginásio para o colegial no IADE, as aulas eram muito ligadas às artes plásticas. Sem dúvida os desenhos aproximaram mais Fabiana e Geraldo do que as maquetes. Em uma das aulas, o professor pediu que fizesse um desenho de branco sobre branco. “Total Malevich, né? Mas na época ele não disse a fonte”. Ela então foi pedir ajuda ao pai, sem saber que as misturas eram justamente o seu dom. Geraldo enfileirou uma série de tintas brancas na mesa. Tinta óleo branca, tinta guache branca, tinta aquarela branca, “E aquele foi um momento muito forte pra gente”. Se Fabiana ainda brincasse de boneca, a Barbie-Atenas, de vestido e régua na mão, acabava de virar a assistente do pai. Nas mesmas proporções, o Zeus das novas mídias também se surpreendia com as técnicas que a filha lhe trazia das aulas. Em especial quando Fabiana encontrou uma caixa de negativos no fundo do armário e chegou com as fotos todas ampliadas. “Eram as Fotoformas”. E se Fabiana não ficou mais feliz pela descoberta que insuflaria o pai da fotografia abstrata, foi porque não seria simples ser artista com as mesmas medidas de Geraldo de Barros. “Será que eu gosto mesmo? Eu gostava muito de física,… então fiquei meio assim”.

 

Fabiana não sabe o seu tamanho, mas não quer ter a mesma medida que Geraldo

Quando Fabiana entra no curso de artes plásticas da FAAP, Geraldo é quem fica contrariado. “Ele tinha medo que as técnicas me podassem”. Fabiana largou a régua, empunhou a lança de Atenas e deu início a um movimento de Ruptura com o pai. Dedicou-se a pintar nus e a desenhar paisagens. E quando as aulas com o mestre Carelli terminaram, ela bateu na porta do Ateliê 74. Durante os cinco anos seguintes, o guardião moderno da pintura figurativa, sentava e enfileirava toda classe de pincéis diante da aluna. “Aprendi a fazer até mesa, cadeira…”. O movimento Ruptura teria que ser ainda mais radical para Fabiana encontrar sua estatura de artista. “Eu não tinha a medida do meu próprio tamanho”. Foi então que voou para Genebra. Completamente anônima, Fabiana fazia bicos de três dias inteiros como uma Barbie-operária e voltava para o pequeno apartamento em Corouge. Só então quando o espaço estivesse em ordem é que começava a pintar. Esticava a tela na parede, afastava os móveis e durante os quatro dias seguintes empunhava régua, pincéis e misturas de tinta. Com sete grandes pinturas de sete edifícios de grandes cidades, fez a sua primeira exposição individual na galeria Care Off. Sorte a sua que as telas de Tours du monde, com 2,10m x 1,60m, foram todas vendidas. Caso contrário seu pequeno estúdio viraria uma reunião de monstros Polifemos para o chá.

 

De como Fabiana voltou a se interessar por réguas

Quando o movimento Ruptura chegou ao fim, apenas uma distância de 8.871.843 km (em linha reta) separaria Atenas de Barros do pai. Ela abandonou os trajes de operária e se virou com os squatters, ocupando apartamentos vazios com ninfas, sátiros e estudantes de arte. “Nessas viradas que eu encontrei o Michel”. Michel Favre, o Apolo do Macintosh, encantava Fabiana com suas imagens em vídeo e web. Em outra frente, Carmen Perrin, a escultora de tons andinos, lhe apresentava outra forma de empunhar a régua na École Supérieure des Beaux-Arts de Genève. “Com a Carmen eu fui indo pra arte pública”. Convidada para a 20ª Bienal de São Paulo, Fabiana levou suas telas gigantes para a escola e sentou diante da professora. Com uma série de sete maquetes enfileiradas, comporia o seu novo trabalho, o 7/R3. Além dos miniedifícios em papel, confeccionaria réplicas maiores para colocar ao lado dos edifícios originais, antes pintados em Tours du monde. Um dos jornais anunciou, enquanto a artista instalava o seu Copan-filho ao lado do Copan-pai na Bienal de 1988: “Depois de prontas, as sete maquetes em escala humana, nas sete cidades do planeta, Fabiana terá criado uma instalação do tamanho do mundo”. Se nem todos os pedestres que andavam no centro da cidade entendiam o conceito de Fabiana, com capacete de obras e régua na mão, Geraldo entendia como ninguém o espírito da sua obra.

 

A obra de Fabiana se mistura com o público e com Michel

No voo de volta, Fabiana levava no colo as fotos de Geraldo para mostrar à Europa. Desde então, Atenas de Barros e Apolo Favre começaram a arquivar cópias e negativos para uma exposição. Quando veio o convite para a 21ª Bienal, o casal se metamorfoseou pela primeira vez: “FABMIC não é um só ser, é um ser só”, explica. Juntos, fizeram a curadoria e produção de Migrações, que levou 15 artistas suíços para ocupar três museus de São Paulo. “Não podia trazer nada, a ideia é que fizessem uma obra no local”. Fabiana fez a sua nas dependências do Museu de Arte Contemporânea. Uma agência de viagens que recebia os espectadores apenas com hora marcada. “Fabiana, aqui é Guto Lacaz, tô indo amanhã às 5 horas!”, lembra. Só então a dona da agência, que ficava o todo tempo lá dentro, atendia o cliente. Para cada um deles a artista preparava uma viagem através de uma série de pinturas. “É uma agência de viagens utópicas”. E assim como na casa de livros da senhorita Barbie, enquanto as histórias de Aller-retour eram representadas, muitas coisas podiam acontecer. “E já logo no segundo dia eu disse Michel, isso aqui tá muito legal!”. O senhor Barbie então providenciou uma câmera imediatamente. Dois anos depois, o casal daria luz à vídeo-instalação Brûlures com esse mesmo material, apresentado no IV Studio Internacional de Tecnologias da Imagem do SESC Pompeia. Depois de se estender para o público, a obra de Fabiana começava a se misturar oficialmente com a de Michel: “A gente não usa pra assinar, mas tá ficando FABMIC. Porque o Michel tem um trabalho dele de cinema e eu tenho o meu, mas às vezes a gente se encontra”.

 

Fabiana usa régua e capacete para ampliar a obra de Geraldo

Nessa mesma época, Geraldo voa até a residência dos FABMIC para mostrar seu último trabalho. “Ele pegou negativos de viagens com a família, fotos corriqueiras e começou a recortá-las e montá-las”, explica. Diante dos dois, Zeus de Barros sentou e colocou as fotos sobre a mesa. Imediatamente Atenas de Barros enfileirou as opções de possíveis museus para exposições. Apolo Favre, por sua vez, enfileirou uma série de filmes que lhe deram mais certeza sobre o título do trabalho. “Quando Geraldo deu o nome de Sobras a este último momento de sua vida artística, eu não tinha consciência de que neste título estavam incluídas noções como morrer, limpar as gavetas, usar as sobras de uma vida inteira”. Fabiana tomou toda a distância que pôde para conseguir medir o tamanho do pai pela última vez. Só então empunhou régua, vestiu capacete de obras e começou a ampliar o trabalho de Geraldo com exposições, livros e documentários. Fabiana Atenas de Barros entenderia como ninguém o espírito daquela obra.

 

 

Grande feito heroico: Geraldo de Barros: isso. O livro-instalação teve a curadoria de Fabiana Barros. Na ocasião do lançamento, em 2013, o Sesc Vila Mariana preparou a exposição Geraldo de Barros: Jogos de dados e Sobras (1980-1990). “É a primeira vez que a gente vai poder ver esse artista como um múltiplo artista, porque até agora a gente só conseguiu ver partes” – disse Fabiana com o exemplar em uma das mãos, régua em outra e capacete de obras. Assim como o espectador caminha pela exposição, o leitor pode percorrer a retrospectiva do artista através dos capítulos. As inúmeras técnicas experimentadas ao longo da trajetória do pintor, gravurista, desenhista e fotógrafo são colocadas em ordem cronológica. O leitor começa na sala de 1944 a 1952, com pinturas figurativas até chegar ao período final, de 1986 a 1995, em que retoma a manipulação fotográfia. “Esses marcos não são rígidos, pois na vida dele nada era definitivo, tudo se misturava”, diz a curadora. O encerramento da trajetória é feito com a projeção da série Sobras, pelo cineasta Michel Favre. A obra ainda inclui textos da autoria de Geraldo e entrevistas. A contracapa, de Kiko Farkas, traz uma linha do tempo feita de colagens de fotos, pinturas, rascunhos e frases do multiartista.

Musas: Gordon Matta Clark. “Infelizmente um artista que morreu muito cedo, na flor da maturidade como artista. Ele não me inspira, mas sim, todas as minhas preocupações em arte, no final vou ver e eram as mesmas que as de Gordon. Tudo sempre bate! Arte x Público, territórios, ações coletivas, os Amigos, enfim. E o mais louco é que ele foi filho de um outro grande artista…”

Dedicatória aos Deuses: “Do ambiente estimulante do pai e da formação austera com a mestra Carelli resultou uma postura cosmopolita, flexível e apaixonada (e, por isso mesmo, apaixonante) em relação à arte e à história da arte, por parte da artista.” (Texto de Renato Schroeder, a propósito na primeira participação da artista na Bienal)

 

 


* Luiz Nadal é colunista na Revista Pessoa e mestrando na UERJ com projeto acerca do gênero perfil.

Produtos relacionados