Sesc SP

postado em 29/06/2014

Ivaldo, o reparador de movimentos

 ivaldo

      


Por Luiz Nadal*

Traje recomendado: Leggings e camiseta extra G
Utensílios de viagem: Caixa de ferramentas

 

A primeira descoberta de Ivaldo e a caixa de ferramentas

A primeira descoberta de Ivaldo não foi por acaso. Primeiro ele convenceu o pai a lhe dar uma bicicleta. Desde que o Todo Poderoso Vargas havia dado um gás na indústria nacional, as crianças pedalavam sobre rodas de todas as marcas pelo bairro. “Era uma atividade muito intensa”. Ivaldinho começou alcançando a Washington Luís, mais tarde a avenida Interlagos e por fim a proeza do Autódromo de Fórmula 1. Ao final de um ano inteiro de longas distâncias, o menino inculcou: suas pernas estavam maiores e mais grossas que os braços. Nem mesmo a mãe, com mãos de enfermeira e uma fita métrica, convenceria o garoto. Inconformado, Ivaldo pegou a caixa de ferramentas do pai e desparafusou o esqueleto da magrela. Da porta da garagem, o pai agradecia aos céus por terem enviado um filho engenheiro como ele. “Tá vendo pai, não tem nenhum problema com ela!”. Após um dia inteiro de análises, Ivaldo não teve dúvida: “O problema é comigo!”. O pai então recolheu a bagunça e guardou a caixa metálica. Sem nenhuma esperança em Deus, Zeus ou no que mais estivesse lá em cima.

 

Ivaldo começa a mexer o corpo como se deve

Na adolescência os membros inferiores e superiores de Ivaldo estavam mais parelhos. Nessa época assistia peças de teatro todas as semanas no Arena e no Oficina. Com 14 anos estava na plateia d’Os pequenos burgueses, encabeçada por Zé Celso, o diretor de dedos dionisíacos. “As peças tinham três, às vezes quatro horas de duração”. Não eram as costas de Ivaldo que não aguentavam. “Eu não queria só ser ator, eu queria ir para o teatro” – explica. Enquanto os militares começavam a fechar as portas do país do lado de fora, a interpretação realista dos atores o chamava para dentro da casa dos Bessemenov. “Hoje em dia os jovens querem apenas ser atores”. Sem ter sido escolhido nos testes de aptidão na Escola de Arte Dramática, Ivaldo decidiu que começaria sua formação como bailarino. “Mexer o corpo era muito importante nesse período, entende?”

 

De como Ivaldo encontra os companheiros de resistência

“Aos poucos a dança começa a me encantar mais”. Suas aulas começaram na escola de Marika Gidali. Apesar da mestra lutar pela dança nacional com linha-dura, mostrou a Ivaldo uma linha bastante flexível. “O que era possível absorver, eu tava indo atrás”. Ivaldo embarcava discretamente na viação Cometa rumo ao Rio de Janeiro. No estúdio D Tânia, em Copacabana, batia continência para a dona da escola. Infiltrada no Theatro Municipal, Tatiana Leskova, a bailarina de leve sotaque russo, tinha o melhor dos planos de guerrilha já armado. Na sala de frente: aulas com Klaus Vianna, o articulador de anatomia e balé clássico. Nos fundos: aulas com Angel Vianna, a condutora de expressão corporal. De volta ao Cometa, constantemente observado por carrancas fechadas, Ivaldo voltava para São Paulo cada vez mais aberto.

 

Ivaldo já tem as primeiras ferramentas para o próprio plano

Com 24 anos, Ivaldo começou a dar aulas nas dependências do Ballet Stagium, a nova escola de Marika. Advogados, jornalistas, donas de casa, estudantes. Cada vez mais se viam sujeitos comuns se esgueirando pela Augusta até as suas aulas de expressão corporal. “Cidadões”, corrige o professor. A maioria dos alunos não eram bailarinos de formação. “Então o que você deve estimular? O que dar para ele?”. Para ensinar esse sujeito cidadão, Ivaldo colocou um plano em prática. Dessa vez foi em busca de algumas senhoras que detinham novos conhecimentos da fisioterapia. Os livros de vertentes europeias continham conceitos estruturais do corpo. “Não se trata simplesmente do gesto dançante, eles mostram como organizar o corpo das pessoas com o que ele já traz na sua bagagem”. Ivaldo passa a armazenar ferramentas de estudiosas como Dorotheia Hanser para aplicá-las nos seus alunos. “Percebo que o aluno necessita entender o funcionamento do corpo dele”. Antes que a dona da escola ouvisse os barulhos dos novos utensílios adquiridos por Ivaldo, ele decide montar o seu próprio espaço.

 

Ivaldo encontra o segredo para reparar  movimentos dos corpos

Em 1974, Ivaldo abriu a sua própria escola. Advogados, jornalistas e donas de casa agora se aglomeravam nas cercanias da avenida Pompeia. O professor dispôs as ferramentas que já tinha em mãos numa caixa metálica. E a partir de então, se esmeraria sobre os corpos dos seus cidadões. Agora que tinha uma base de trabalho fixa, precisaria de outros meios de busca. A bicicleta e o Cometa são substituídos pela nau dos ares: “Fiz 36 viagens para o exterior desde então pra estudar”. Visitou escolas de psicomotricidade em diversos países da Ásia, Europa Central e Oriental. Sempre de olho nos movimentos e nos gestos: indianos dançando, húngaros pulando, romenos caminhando. “O que eu podia introduzir desses movimentos no meu trabalho corporal?”. Aos poucos o Método Ivaldo Bertazzo adiciona mais alguns apetrechos na sua caixa portátil, totalmente dedicada ao corpo do sujeito comum. (Para o dedo enrijecido dos advogados; o pescoço duro dos jornalistas; as costas cansadas da dona de casa). “Com o tempo a nossa estrutura perde a organização”. Explica Ivaldo, o reparador de movimentos do corpo.

 

Ivaldo constrói o cidadão dançante

Os corpos tratados pela caixa Ivaldo dão cada vez mais resultados. “Aí eu construo o cidadão dançante” – Ivaldo analisa os parafusos que tem na mão. As técnicas do seu método foram permitindo que os alunos se apresentassem no palco ao final de um ano de aulas. Os mais de 26 espetáculos, conhecidos como Cidadão dançante, não só desmancharam carrancas como atraíram mais curiosos. Em pouco tempo, a vinheta do Fantástico anunciava: O coreógrafo e fisioterapeuta Ivaldo Bertazzo ensina como fazer bom uso do nosso corpo! Plim-plim! Ivaldo faz demonstrações com escovinhas, toalhas e rolhas na tevê.

 

Ao final Ivaldo recolhe a bagunça e guarda a caixa metálica

Com a caixa de ferramentas nacionalmente aprovada, Ivaldo começa um trabalho com jovens de periferia. E são os mesmos apetrechos que irá utilizar com moradores do Complexo da Maré. “O trabalho de desenvolvimento da psicomotricidade fortalece o cognitivo e a capacidade intelectual desses jovens”. Ivaldo monta três grandes espetáculos na favela carioca, dos quais Dança das Marés é o apogeu. Os 62 corpos de adolescentes, rigorosamente reparados pela caixa metálica, interpretam o texto de Drauzio Varella e dançam ao som de Uakti. A partir de então o Sesc começou ajudar o coreógrafo a levar suas ferramentas para outros lugares. O projeto Dança Comunidade aperta os parafusos da ideia inicial e possibilita encenações como Samwaad: rua do encontro. “O elenco formado por 55 jovens de sete ONGS paulistanas, passou por inúmeras atividades, como aulas de reeducação do movimento, percussão, fisioterapia, expressão verbal e origami durante os nove meses de ensaio” – lembra. Com os espetáculos seguintes também ganha corpo a Cia. de Teatro Dança Ivaldo Bertazzo. “A intenção não é transformá-los em bailarinos, mas ensiná-los a estudar”, explica. No fundo, o que o professor quer é que eles sejam suas próprias ferramentas.



Grande feito heroico: Corpo vivo: reeducação do movimento. Publicado em 2010, o primeiro livro de Ivaldo é um manual prático para desmontagem e remontagem do corpo humano. Através dele, professores e alunos são orientados a corrigir os desequilíbrios mecânicos que deformam o corpo. Cada passo da reeducação do movimento – “Reparação! Reparação!”, corrige o professor. Cada passo da restauração é descrito em detalhes e ilustrado com fotografias. Cérebro ativo foi publicado em 2012 e Gesto orientado, de 2014, aperta o parafuso final da trilogia.

Musas: Fernanda Montenegro “Ela tem um eixo constante na carreira de atriz. É participante do país, gosta de ser brasileira, trabalha bastante. Gente assim que me atrai”. Plim! Plim!

Dedicatória aos Deuses: “Hoje, sabemos que poucas pessoas são elogiadas no Brasil inteiro. Ele é político? Não. Jogador de futebol? Não. Coreógrafo. Coreógrafo! Quem é esse senhor? O paulistano nascido no bairro da Mooca, que foi dançar contra a vontade dos pais. Ele se transformou primeiro no professor dos ricos, depois, em coreógrafo dos pobres.” (Antônio Abujamra, na apresentação do programa Provocações, exibido pela TV Cultura).

 


* Luiz Nadal é colunista na Revista Pessoa e mestrando na UERJ com projeto acerca do gênero perfil.

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