Sesc SP

postado em 07/05/2014

As palavras entendidas como seiva e nutrição

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A situação psicológica e política do indivíduo contemporâneo é explorada a partir de referências literárias e musicais

 

Em uma sociedade pautada pela instantaneidade da informação e pela vertiginosa velocidade com que os conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa e pelas redes sociais chegam aos corações e mentes, as grandes questões humanas, como os problemas morais, filosóficos e sociais, encontram cada vez menos espaço para circular em ambientes dispostos a uma reflexão artesanal, acurada, destituída de um histérico imediatismo. O ser humano rodeado de aparatos técnicos e tecnológicos é um homem que lê e digita com rapidez; e não propriamente um homem que pensa com vagar e profundidade sobre aquilo que lê e digita. 

O livro Raízes errantes, de Mauro Maldonato, que as Edições Sesc São Paulo estão reeditando, constitui um poderoso antídoto contra a celeridade dos tempos modernos. Trata-se – segundo o filósofo Edgar Morin, que introduz o leitor à obra por meio de um prefácio alentado e luminoso – de um “diário poético-reflexivo de viagens por entre ideias, paixões, pesquisas, cujas passagens desde logo revelam os traços intelectuais de um estudioso temperado ao fogo de uma longa experiência clínica (o autor é um psiquiatra de orientação fenomenológica) e de uma paixão aguçada pela insatisfação com todo fechamento e rigidez do pensamento”.

Dividido em um prelúdio e nove capítulos, Raízes errantes é um livro organizado em torno de três temas básicos – errâncias, fronteiras e incertezas – que se espraiam por outros assuntos correlatos e explodem em uma miríade de interrogações filosóficas e poéticas dispostas a conduzir o leitor pela tão antiga e ao mesmo tempo ainda tão fascinante aventura do pensamento humano. Em relação ao conceito de error (viagem sem rumo ou de rumo e duração indeterminados), a ideia de travessia desenvolvida no livro – que o autor define como “caminho do pensamento e pensamento do caminho” – não conduz a regiões conhecidas e a terrenos de contornos previamente traçados. Maldonato muito habilmente vai abandonando os rumos de suas próprias áreas de conhecimento, a psiquiatria e a filosofia, para se entregar a ideias e pensamentos desviantes. Tal movimento – definido programaticamente de “errático” – não priva da noção de um sentido especialmente “progressivo”: aquele que vislumbra uma meta mais à frente a ser alcançada. Antes, ele prefere cumprir a ousada trajetória de assumir plenamente o desvio, o descaminho ou o que o senso comum costuma chamar, normalmente, de erro.

Quanto à necessidade da transposição de fronteiras defendida pela obra, Mauro Maldonato já mostrou em seu ensaio “A ordem espontânea do conhecimento” que “a fenomenologia ensina que o limite é um espaço no mundo que não é do mundo. Que, entre os espaços de nossa vida, existe o espaço de nossas paixões, de nossos desejos, de nossos sonhos. Espaço que nos convoca para fora de nós mesmos. Espaço dentro do qual nosso tempo se desdobra e se consome”. De posse dessa consciência, o autor defende ser ilusória toda e qualquer tentativa de compreensão do mundo por intermédio dos instrumentos de uma racionalidade que observa, cataloga, exclui e, sobretudo, se arroga o direito de descrever esse mundo observável de maneira isenta e distanciada, isto é, sem tomar parte nele e sem dizer nada de si mesma.

Por fim, o livro trata também do estatuto assumido pelas incertezas na contemporaneidade. A fundamentação lógico-prescritiva das ciências não pode fazer com que elas se atribuam maior autoridade do que aquela exercida por outras formas de conhecimento. A maior das certezas que o século XX nos legou foi a do limite do conhecimento científico, representado pela impossibilidade de eliminarmos as incertezas. Assim, diante de um mundo imprevisível e intranquilo, o enfrentamento das dúvidas e hesitações e do consequente destino precário dos indivíduos, em âmbito particular, e da humanidade, de modo geral, é um desafio permanente para o discurso científico. 

Transitando pelos domínios de uma sensibilidade artística e cultural bastante refinada – própria de suas raízes mediterrâneas –, Mauro Maldonato oferece ao leitor um conjunto de referências literárias e musicais que tecem uma trama ao mesmo tempo intelectual e afetiva, cujo grande objetivo é propor uma viagem paralela, experimentada por aquele tipo de leitor-viajante que adora trilhar também os caminhos da arte, da cultura e da educação, descortinando toda a sorte de paisagens da alma a que as manifestações artísticas costumam nos conduzir. Assim, a literatura de Eugenio Montale, Giacomo Leopardi, Marcel Proust e Fernando Pessoa e a música de Franz Schubert e Richard Wagner, por exemplo, são citadas recorrentemente ao longo dos ensaios, potencializando as reflexões e instaurando uma bem-vinda articulação entre razão e sensibilidade.

O estilo fecundo e fecundante de Maldonato o leva a incorporar ao seu sistema de referências tanto um poema de Eugenio Montale que expressa o desconcertante assombro da passagem do sentido habitual ao não sentido –“quando as interações dos gestos diários se transmutam na inopinada paisagem do nada” – quanto um lieder de Schubert, que mostra o segredo dos viajantes que não se voltam para trás, dos que não têm nem destino nem morada, dos que partem sem voltar, do estranho, do diferente, do excluído, do xénos, enfim. Em outro momento, o tema do viajante – bastante caro à ideia de identidade/alteridade explorada sistematicamente pelo autor – é resgatado na lírica de Giacomo Leopardi, que “havia dado voz”, escreve Maldonato, “à música do pensamento puro, à dissonância vertiginosa entre a experiência ordinária do espaço e do tempo, e a do espaço e do tempo infinitos”. E da estática visão leopardiana do infinito, o autor chega à ideia da dissolução da unidade do eu na poesia de Fernando Pessoa, o grande bardo lusitano cuja figura atravessa de modo recorrente o livro: “Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não eus sintetizados num eu postiço”.

É natural pensar, então, que o autor de Raízes errantes tenha acabado por se contaminar pela matéria lírico-existencial presente em todas essas referências. Seu livro é uma obra impregnada de ressonâncias poéticas. Já nas primeiras páginas, o autor anuncia: “Quando o olhar se despede da paisagem e as noites expandem a alma, no ponto exato do horizonte onde o deserto encontra o mar, pode-se ouvir o eco de trânsitos nômades, fantásticas projeções de um movimento que apaga o centro, a segurança, a proteção, o poder. Nas ilimitadas extensões do deserto, na instabilidade do mar ou na tortuosa trilha que leva à montanha (mas outras imagens poderiam nos socorrer), esses homens – que se tornaram existências na viagem – sentiram a impossibilidade de dizer o limite, o engano da inocência, a tortuosidade do sentimento, o ‘antes’ de uma liberdade difícil, o tempo sem espera ou nostalgia”.

Edgar Morin afirma no final do prefácio que o pensamento é “uma arte que tem de inventar, a cada vez, um conceito próprio sobre si, uma arte que põe em movimento todas as atividades da mente/cérebro”. Finda a leitura de Raízes errantes, pairará uma dúvida sobre o espírito do leitor: terá ele concluído um itinerário de aprumada reflexão ou terá percebido o início de um percurso cognitivo bem mais longo, convertido na necessidade de avançar sempre, seja pela estrada principal da intelecção, seja pelos atalhos ou desvios não menos essenciais da sensibilidade?    

 

Veja também:

:: Leia trechos do livro na Livraria Sesc.

:: A trajetória de Mauro Maldonato

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