Entre a ciência e a filosofia
Reunião de textos publicados em importantes periódicos científicos apresentam um denso estudo sobre o cérebro humano
O surgimento de novas teorias sobre o funcionamento do cérebro tem levado muitas pessoas a acreditar que não está longe o dia em que a ciência terá condições de saber em detalhes o que acontece na mente humana, da simples constituição de um neurônio à intrincada atividade do pensamento. Entretanto, nem sempre os modelos científicos propostos se mostraram à altura do desafio. Basta pensar nas tentativas de explicação da consciência por meio de modelos matemáticos que malograram frente ao problema da subjetividade. Desse modo, não se pode ignorar que a natureza complexa do cérebro humano exige uma mudança de perspectiva em relação ao seu estudo.
Recentemente, o neurobiólogo francês Jean-Pierre Changeux afirmou que o cérebro humano não pode ser concebido como um computador feito de circuitos pré-fabricados pelos genes, evidenciando que a estrutura cerebral, derivada de processos de seleção neuronal, torna o órgão muito diferente de um “todo genético cerebral”. Foram justamente os vínculos do cérebro com o ambiente físico, social e cultural que fizeram dele o motor da evolução das espécies. É hora, enfim, de as neurociências cognitivas estabelecerem novas relações entre a filosofia da mente e a filosofia da linguagem, a linguística e a neurobiologia, a psicologia e a lógica, a inteligência artificial e a ciência cognitiva. Dificilmente nascerá uma nova ciência da mente se não for conferida a devida relevância científica a temas como empatia, intersubjetividade, livre-arbítrio e individualidade.
Esse fascinante universo científico e filosófico inspirou o livro Da mesma matéria que os sonhos: sobre consciência, racionalidade e livre-arbítrio, de autoria do psiquiatra italiano Mauro Maldonato, lançado pelas Edições Sesc São Paulo. Concebida para divulgar ao grande público as ideias que o autor já havia desenvolvido em artigos e ensaios especialmente publicados em revistas renomadas como Scientific American e Mente & Cérebro, a obra constitui uma poderosa radiografia das tendências e do debate em andamento nas neurociências contemporâneas.
Em Da mesma matéria que os sonhos: sobre consciência, racionalidade e livre-arbítrio, Mauro Maldonato tece riquíssimas reflexões que remetem a uma linhagem admirável de intelectuais italianos da qual fazem parte poetas, filósofos e cientistas como Galileu Galilei, Giordano Bruno e Giambattista Vico. Ao abrir o livro, o leitor tem ampla liberdade de iniciar sua exploração por onde desejar, já que os capítulos não estão organizados como pré-requisitos uns dos outros.
O artigo “Do universo atemporal a um presente enganador”, por exemplo, trata de como a consciência se apropria da noção de tempo, um tema pelo qual Maldonato tem especial atração. Para ele, perguntas como o que é o tempo, o que é a mudança e o que é o passado (e, se ele existe mesmo, para onde vai?), que os físicos relegaram aos filósofos, devem ser “relançadas com ênfase”.
Já “O eclipse da esperança” é uma poderosa incursão pelos labirintos escuros da depressão, experiência-limite de sofrimento, marcada pela exclusão, pelo sentimento de culpa e pela sensação que os antigos chamaram de “melancolia”. Ao criticar os métodos científicos tradicionais, o autor afirma: “Um tratamento psiquiátrico autêntico tem de encontrar o próprio sentido nas questões fundamentais da condição humana, que dizem respeito a todos nós: a alegria e a tristeza, o tédio e o enfado, a melancolia e a esperança, a dor e o desespero. Uma psiquiatria que não saiba aceitar as fronteiras de seu não conhecimento e, sobretudo, que delega o confronto com as categorias constitutivas de toda experiência psicopatológica a métodos terapêuticos indiferenciados, está fadada a falir”.
O que chama a atenção nos 17 textos da coletânea é o bem-vindo confronto entre ciência e filosofia habilmente manejado pelo autor. Não é uma derrota da filosofia conceder a um neurocientista certo grau de titularidade sobre o problema da consciência. Ao contrário, é uma conquista – defende Maldonato. Segundo ele, “a viagem pelos segredos da mente humana não solicita nem abjurações, nem renúncias às próprias teorias. Tampouco a eliminação das diferenças entre os vários programas de pesquisa. Nenhuma teoria científica, por mais rigorosa que seja, pode evitar erros no próprio interior ou considerar-se autossuficiente ao abordar as questões da nossa vida de relações. É preciso, portanto, reconhecer serenamente que, apesar dos prodigiosos resultados experimentais, ainda não estamos em condições de compreender fenômenos como a percepção, a consciência, a decisão, a conscientização consciente, o livre-arbítrio e assim por diante”.
Ao terminar a obra, o leitor certamente reconhecerá que isoladamente nem a ciência nem a filosofia podem nos dizer muito sobre a consciência humana, devendo atuar juntas para o entendimento do novo homem do século XXI. O livro de Maldonato não ecoa somente em seu título a fala de Próspero em A tempestade, de William Shakespeare. Seus textos são escritos como se fossem contas de um grande colar chamado ciência, atadas pelo fio de uma fecunda imaginação criadora tão habilmente cultivada pelo autor.
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