Sesc SP

postado em 07/05/2014

Entre a ciência e a filosofia

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Reunião de textos publicados em importantes periódicos científicos apresentam um denso estudo sobre o cérebro humano

 

O surgimento de novas teorias sobre o funcionamento do cérebro tem levado muitas pessoas a acreditar que não está longe o dia em que a ciência terá condições de saber em detalhes o que acontece na mente humana, da simples constituição de um neurônio à intrincada atividade do pensamento. Entretanto, nem sempre os modelos científicos propostos se mostraram à altura do desafio. Basta pensar nas tentativas de explicação da consciência por meio de modelos matemáticos que malograram frente ao problema da subjetividade. Desse modo, não se pode ignorar que a natureza complexa do cérebro humano exige uma mudança de perspectiva em relação ao seu estudo. 

Recentemente, o neurobiólogo francês Jean-Pierre Changeux afirmou que o cérebro humano não pode ser concebido como um computador feito de circuitos pré-fabricados pelos genes, evidenciando que a estrutura cerebral, derivada de processos de seleção neuronal, torna o órgão muito diferente de um “todo genético cerebral”. Foram justamente os vínculos do cérebro com o ambiente físico, social e cultural que fizeram dele o motor da evolução das espécies. É hora, enfim, de as neurociências cognitivas estabelecerem novas relações entre a filosofia da mente e a filosofia da linguagem, a linguística e a neurobiologia, a psicologia e a lógica, a inteligência artificial e a ciência cognitiva. Dificilmente nascerá uma nova ciência da mente se não for conferida a devida relevância científica a temas como empatia, intersubjetividade, livre-arbítrio e individualidade.

Esse fascinante universo científico e filosófico inspirou o livro Da mesma matéria que os sonhos: sobre consciência, racionalidade e livre-arbítrio, de autoria do psiquiatra italiano Mauro Maldonato, lançado pelas Edições Sesc São Paulo. Concebida para divulgar ao grande público as ideias que o autor já havia desenvolvido em artigos e ensaios especialmente publicados em revistas renomadas como Scientific American e Mente & Cérebro, a obra constitui uma poderosa radiografia das tendências e do debate em andamento nas neurociências contemporâneas. 

Em Da mesma matéria que os sonhos: sobre consciência, racionalidade e livre-arbítrio, Mauro Maldonato tece riquíssimas reflexões que remetem a uma linhagem admirável de intelectuais italianos da qual fazem parte poetas, filósofos e cientistas como Galileu Galilei, Giordano Bruno e Giambattista Vico. Ao abrir o livro, o leitor tem ampla liberdade de iniciar sua exploração por onde desejar, já que os capítulos não estão organizados como pré-requisitos uns dos outros.

O artigo “Do universo atemporal a um presente enganador”, por exemplo, trata de como a consciência se apropria da noção de tempo, um tema pelo qual Maldonato tem especial atração. Para ele, perguntas como o que é o tempo, o que é a mudança e o que é o passado (e, se ele existe mesmo, para onde vai?), que os físicos relegaram aos filósofos, devem ser “relançadas com ênfase”.
Já “O eclipse da esperança” é uma poderosa incursão pelos labirintos escuros da depressão, experiência-limite de sofrimento, marcada pela exclusão, pelo sentimento de culpa e pela sensação que os antigos chamaram de “melancolia”. Ao criticar os métodos científicos tradicionais, o autor afirma: “Um tratamento psiquiátrico autêntico tem de encontrar o próprio sentido nas questões fundamentais da condição humana, que dizem respeito a todos nós: a alegria e a tristeza, o tédio e o enfado, a melancolia e a esperança, a dor e o desespero. Uma psiquiatria que não saiba aceitar as fronteiras de seu não conhecimento e, sobretudo, que delega o confronto com as categorias constitutivas de toda experiência psicopatológica a métodos terapêuticos indiferenciados, está fadada a falir”.

O que chama a atenção nos 17 textos da coletânea é o bem-vindo confronto entre ciência e filosofia habilmente manejado pelo autor. Não é uma derrota da filosofia conceder a um neurocientista certo grau de titularidade sobre o problema da consciência. Ao contrário, é uma conquista – defende Maldonato. Segundo ele, “a viagem pelos segredos da mente humana não solicita nem abjurações, nem renúncias às próprias teorias. Tampouco a eliminação das diferenças entre os vários programas de pesquisa. Nenhuma teoria científica, por mais rigorosa que seja, pode evitar erros no próprio interior ou considerar-se autossuficiente ao abordar as questões da nossa vida de relações. É preciso, portanto, reconhecer serenamente que, apesar dos prodigiosos resultados experimentais, ainda não estamos em condições de compreender fenômenos como a percepção, a consciência, a decisão, a conscientização consciente, o livre-arbítrio e assim por diante”.

Ao terminar a obra, o leitor certamente reconhecerá que isoladamente nem a ciência nem a filosofia podem nos dizer muito sobre a consciência humana, devendo atuar juntas para o entendimento do novo homem do século XXI. O livro de Maldonato não ecoa somente em seu título a fala de Próspero em A tempestade, de William Shakespeare. Seus textos são escritos como se fossem contas de um grande colar chamado ciência, atadas pelo fio de uma fecunda imaginação criadora tão habilmente cultivada pelo autor.

 

Veja também:

:: Trechos do livro

 

 

:: A trajetória de Mauro Maldonato

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